Vida de fumaça

Ele acordou assustado, olhou em volta e viu que estava deitado na calçada. Algumas pessoas passavam, quase tropeçando nele, sem se importarem. Lembrou-se que havia bebido cachaça a noite inteira, com uns “chegados” num boteco da rua Rego Freitas.

Levantou a cabeça e olhou em volta, percebeu que estava na Rua Aurora, sob uma marquise de um bingo. Levantou-se devagar, quase se espreguiçando, aproveitando o calor tímido do sol da manhã que batia em seu rosto, quando percebeu que a cabeça doía um pouco, talvez resultado da cachaça em excesso, ou de alguma pancada na noite anterior.

Caminhou em direção à sua moradia, um prédio ocupado na rua Santa Isabel, no centro de São Paulo.

Zé Geraldo mudou-se para ali havia uns oito meses, e antes morava na praça da Sé, junto com outros moradores de rua, de onde foram expulsos por fiscais da prefeitura, por causa da visita do Papa à igreja que iria acontecer em maio. Os fiscais disseram, de forma grosseira e indireta, que eles não poderiam ficar, pois os líderes religiosos locais achavam que não seria bom que os visitantes do Vaticano vissem os mendigos ali, pois seria constrangedor. Não entendeu como os líderes de uma religião que teve início com a pregação de alguém que não possuía propriedades, e vagava sem ter onde dormir nem comer, e que pregava o desapego aos bens materiais, poderiam achar vergonhoso a existência de moradores de rua ali próximo.

Ele era morador de rua desde os trinta e quatro anos, quando saiu de sua cidade onde nasceu e morou durante este período. Novorizonte era uma pequena cidade ao norte de Minas Gerais, e lá ele vivia com mulher e dois filhos pequenos. Era um cidadão perfeitamente enquadrado às normas sociais de conduta: trabalhava o dia todo, a semana inteira numa fazenda na região, vivia para a família e ia sempre à missa aos domingos com a família.

Um dia descobriu que a mulher o traía com um primo que morava próximo à sua casa, e ficou sem saber o que fazer: matar a mulher, e depois se matar, ou fugir largando tudo. Escolheu a segunda opção, e pegou um ônibus até Belo Horizonte, depois veio para a cidade de São Paulo, onde passou a morar na rua, sem nunca mais ter notícias da família.

Chegou perto da porta de entrada do prédio, duas prostitutas olharam para ele: “ E aí Zé, tem fogo?”. Pegou um isqueiro velho (mas que ainda funcionava) que tinha no bolso e deu a elas, que acenderam um “cachimbo”, feito com tubo de caneta e lata de refrigerante, queimando a pedra que estava dentro.

“Vai aí, Zé?”

“Não, esse treco me dá enjôo”.

Subiu até o quarto andar, onde morava com Giba, um homossexual de quem sabia muito pouco, só sabia que era perdido no mundo, sem ninguém, soropositivo e viciado em pó. Apesar de dividirem o mesmo “apartamento”, uma quitenete com um quarto, uma saleta/cozinha e um pequeno banheiro, não possuíam nenhuma relação afetiva, pois Zé dizia que não era “chegado naquilo”.

“Oi Zé! Tá sumido, hein!?”

“Então Giba, tava com uns chagado aí, tomando umas”

“Zé, cê tá sabendo do que tão falando aí? Que vão expulsa a gente daqui?”

“Quero vê tirá a agente daqui, esses filho da puta! Só se fô na bala!”

“Tão dizendo que a prefeitura vai mandá os home desocupá o prédio!”

“Sei, quero vê!”

Zé ficou angustiado, mas já estava acostumado àquilo, pois desde que passou a morar na rua, vivia sendo expulso dos lugares. Não podia ficar na rua, pois a prefeitura não deixava, afinal, a rua não é pública? E qualquer pessoa, desde que não ameaçasse alguém, não poderia ficar nela? E também não poderia ficar nos imóveis desocupados, pois já tinha dono. Se o dono precisava mesmo do imóvel, porque não utilizava?

Às vezes alguém aparecia para “ajudá-los” (a ele e outros mendigos), com comida e roupas. Geralmente eram grupos de religiosos, de profissionais, até estudantes apareceram. Quando davam comida e roupas, tudo bem, pois a comida resolvia o problema da fome, e as roupas eram trocadas no boteco por cachaça, principalmente os cobertores novos e roupas em bom estado, que eram vendidas a um dono de brechó ali no centro mesmo.

O problema é que às vezes aparecia alguém que, além da doação, queria “convertê-los”, ou à religião, ou à “convivência social”. As pessoas pensavam que a vida que elas viviam era a melhor forma de vida, e achavam que para eles, isso seria bom também, sem perguntar o que eles pensavam ou sentiam. Queriam que os mendigos seguissem a religião delas, pois era a melhor, que eles trabalhassem num emprego fixo, tivessem uma casa e uma renda, pagassem impostos, torcessem por um time, assistissem a tv no domingo, e essas outras coisas que uma pessoa “normal” costuma fazer. Achavam que o mendigo estava ali porque não teve oportunidade, ou foi “excluído” pelos outros.

Não pensavam que, na maioria das vezes, o mendigo “escolheu” levar aquela vida, pois não conseguia se adaptar às chamadas “convenções sociais”, e não conseguia viver preso a um emprego, que geralmente era algo chato e penoso, e ficar morando em um lugar fixo, prestando contas da sua vida a alguém, como fazem a maioria das pessoas.

“Zé, olha lá embaixo, tá chegando os home!”

“Cadê? Não tô veno!”

“Alí, na esquina!”

Desceram correndo pelas escadas, quase tropeçando. Ao chegarem na portaria, viram os policiais com armas, e gritando com os moradores que estavam na calçada:

“Vamo rapá fora, seus vagabundo! Isso não é de vocês!”

Tonho, que era instruído, e conhecia um pouco de leis (diziam até que tinha começado a faculdade de Direito), questionou os policiais:

“Calma lá! Pra tira a gente daqui tem que papel! Cadê o documento?”

“Ta aqui, vagabundo!”

Mostrou o documento de reintegração de posse. Tonho deu uma olhada.

“É verdade, tamo despejado!”

“Não vamo saí daqui não!”

Alguns começaram a gritar. De repente, começou um tumulto, a polícia começou a bater em alguns mendigos. Começaram a correr e a subir ao prédio, com a polícia correndo atrás, e batendo...

“Saiam, vamo desocupá!!!”

Logo ouviu-se gente correndo, um tumulto dentro do prédio. Um estouro. Mais tumulto. De repente chamas apareceram. O prédio começou a pegar fogo.

As tábuas que serviam de parede começaram a queimar. Roupas velhas incendiando, viravam cinzas e voavam...Tudo queimava...

Neste momento os mendigos haviam descido todos, inclusive Zé, Giba, Tonho e outros. Olhavam o prédio em chamas, os policiais, que também haviam descido, também olhavam, e um deles chamava, pelo rádio, os bombeiros.

Zé, vendo tudo em chamas, olhou para aquilo com desolação. Resignado, pensou: “Bem, nossa vida é assim mesmo, todas as certezas viram fumaça, são incendiadas. A própria vida, num certo sentido, não passa de fumaça: esvai aos poucos”.

Virou para a rua, olhou a esquina, os carros, poluição, fumaça do prédio, e começou a caminhar. Passou pelos bombeiros que chegavam correndo, virou a esquina e sumiu, sem olhar para trás