ABANDONO

No começo da minha vida era tudo maravilhoso! Em casa me enchiam de carinhos, eu tinha o meu cantinho, tinha uma mãe e bastante irmãozinhos para brincar, embora não tenha conhecido o meu pai, ele não me fazia muita falta. Depois que fui crescendo os meus irmãos foram sendo escolhidos e levados. Mesmo estando só, eu não era mais a atração principal. Os carinhos foram cessando (não sei por que razão, pois, sempre fui submisso e quando ralhavam comigo e me davam tapas eu aceitava e saia chorando, talvez foi porque eu era arteiro e derrubava coisas ou porque abocanhava tudo o que via, às vezes até estragava), A minha mãe desapareceu misteriosamente e mesmo que eu a procurasse ali por perto sempre a chamá-la nunca mais a vi.

Um belo dia eu fui saltitante atender ao conhecido assovio e sai a passeio com o meu amiguinho. Caminhamos por várias estradas e becos, tudo era novidade para mim. De repente, sem eu esperar ele me cobriu com uma roupa velha, achei que fosse uma brincadeira e tentei morder procurando me soltar, mas eu não consegui livrar-me tão rápido. Depois de um bom tempo abaixo de um forte sol e quase sufocado, finalmente eu consegui sair.

Não vi meu amiguinho, não vi ninguém. Caminhei um bom trecho, olhava para os lados e via coisas parecidas com o lugar onde eu morava, mas, não reconhecia nada. Eu estava perdido e abandonado. Embora muitos amiguinhos diferentes tivessem tentado me levar pra casa, eu logo era mudado de lugar, de um modo parecido com a vez anterior. Carregaram-me dentro de caixas, me jogaram na mata, colocaram-me perto de outros parecidos comigo, mas, ao me aproximar eu era expulso também. Fui até agredido, machucado e mordido por eles. Então eu fui crescendo mais ainda e me virando sozinho, passei muita fome e frio, ainda continuava a fugir de cães bravos, enfrentei o perigo das ruas com motos e carros.

Assim fui adquirindo malandragens e vivência. Há bastante tempo eu sou um animal de rua, mais ressabiado do que assustado, pois, de tudo o que eu sofri no passado, nada se assemelha ao que eu estou passando agora. Aqueles mesmos tipos de amiguinhos que outrora me fizeram por um curto período de tempo ser feliz, hoje me maltratam muito. Xingam, me enxotam, me dão chutes, sempre jogam pedras e até já me machucaram com elas, tenho uma ferida que ainda não cicatrizou por motivo dessa agressão. Eu manco um pouquinho numa perninha traseira também, devido a uma forte paulada que levei nas costas.

A maioria não nota, mas, em muitos momentos eu derramo lágrimas de dor, dor de abandono, de solidão. Noutras coisas eu me viro até bem, mas, quando o meu indefeso corpinho é agredido e machucado eu choro e lamento com gritos de dor. É impossível não perceber o meu lamento pelos meus latidos, que chegam muitas vezes a transformarem-se em angustiantes pedidos de socorro, porém, em vão. Quem iria me salvar?... Então só me resta afastar-se e procurar um cantinho isolado longe das pessoas más, ficar gemendo e tremendo e esperar a dor passar, junto com as sentidas lágrimas que infelizmente ninguém vê.

Muitos deles simplesmente me ignoram achando que eu não tenho sentimentos, sofrimentos e necessidades. Eu não sou totalmente infeliz porque ainda estou conseguindo sobreviver apesar de tudo, mesmo desconfiado, às vezes tenho que arriscar e aceitar a comida de certas pessoas que tem pena de mim. Sou recriminado ao romper sacos de lixo e espalhá-los, pela minha batalha diária atrás de comida. Não tenho a humana consciência de que isso é certo ou errado. Faço por uma questão de sobrevivência e me limito a isso. As vezes até mesmo quando eu ganho ou encontro um alimento jogado no chão suficiente para me fartar, fujo sem acabar a minha refeição devido a uma perseguição sofrida. Faz muito tempo que eu não sou asseado e as pulgas me dão coceiras e alergias que provocam pequenas feridinhas no meu corpo.

A chuva só me alivia, pois, como todos os animais iguais a mim, faço a minha limpeza corporal apenas me lambendo, as minhas mordidinhas não eliminam de vez esses parasitas e sou obrigado a suportá-los.

Só tenho um grande e inesquecível lamento. “Saber que nos dias que ainda me restam, nunca mais irei me livrar desta forte dor, uma incomparável dor de abandono.”

Eduardo Eugênio Batista.

Setedados
Enviado por Setedados em 09/04/2010
Reeditado em 09/04/2010
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