Gaúchos não são bairristas

Daí, né, na Sexta-feira Santa a gente resolveu que ia junto colher marcela (aqui a gente chama marcela de marcela).

O Calil sabia que eu morava em Lomba Grande, mas eu nunca consegui explicar pra ele o quanto a Lomba era grande. A Sexta-feira Santa era a oportunidade única de apresentar a Lomba pra ele, ele ia se abobar.

Eu sou tão orgulhosa do meu lugar que até o mapa da cidade eu mostrei para ele, mostrando até onde iam os limites do meu bairro (se é que Lomba tem limite). Lomba Grande ocupa dois terços da cidade.

Há quem diga que não mora em Novo Hamburgo, mora em Lomba Grande.

- Tu é de Novo Hamburgo?

- Não, sou da Lomba.

E há estrangeiros que admitem a grandeza do lugar:

- Onde tu mora?

- Na Lomba.

- Achei que tu fosse de Novo Hamburgo.

Pois é. Lomba Grande é grande. Assim como o Rio Grande.

Lomba é um mundo à parte. Situa-se a Lomba no planeta muito facilmente, com poucas coordenadas: distrito rural da ex-capital nacional do calçado do Brasil. O ponto de referência é o Brasil, sabendo-se onde fica o Brasil, acha-se a Lomba.

E a gente foi colher marcela em Lomba. Meu pai e minha mãe numa moto, eu e o Calil na outra.

Acordamos tão cedo que eu preferi nem olhar no relógio pra ver a hora, mas pra apresentar a Lomba pro namorado vale qualquer coisa, até acordar cedo.

Passamos por alguns pontos do centro da Lomba (o posto de gasolina, a igreja, a escola, a sociedade atiradores e o fim da linha do ônibus) (sim, Lomba Grande tem seu próprio centro) e entramos na área rural, lá onde tinha marcela.

Muitas outras pessoas estavam lá colhendo a marcela abençoada de Lomba Grande, na Sexta-feira Santa.

Mas aí, eu acho que meu pai quis mostrar bem a Lomba pro Calil, porque ele disse 'vamos por aqui, fazer a volta na Lomba'. Eu não me arrisco a dizer que conheço a Lomba a ponto de ir fazer a volta e saber voltar, mas meu pai diz que conhece, fui de atrás.

Até um certo ponto estava tudo lindo. Passamos pela placa do Sítio da Cascata, asfalto bom, campo pra cá, casa antiga pra lá, uma bem longe da outra, como manda o interior. Depois começou a acabar o asfalto e meu pai continuou indo. E eu de atrás, ele conhecia o caminho.

Aí começou a demorar pra ele entrar em alguma rua que eu conhecesse, ele só entrava em ruas que eu nunca tinha passado. No começo eu achei que ele estava se saindo um excelente guia turístico, mas depois, quando ele deu uma volta no meio da rua e continuou seguindo em frente (e eu de atrás), eu descobri que aquelas eram ruas por onde ele também nunca tinha passado.

Aí a gente achou uma casa! Abandonada. Ele parou, desceu o barranco, entrou na casa, todo mundo entrou. Não tinha ninguém lá, mas os morcegos foram muito receptivos. Também não tinha nada lá, a não ser, na garagem, uma Brasília com placa amarela de duas letras.

Depois a gente seguiu viagem. Estávamos perdidos, mas seguros: por mais voltas que déssemos, nunca sairíamos de Lomba Grande. Lomba Grande é tão grande que o vivente se perde dentro do próprio bairro.

Mais depois, encontramos uma pessoa e meu pai gritou 'pra que lado fica a Lomba?', ela apontou pra lá. E fomos. Moradores da Lomba, perdidos na Lomba, perguntando pra uma moradora da Lomba pra que lado ficava a Lomba.

Mas, meu pai mora na Lomba a 20 e tantos anos, ele sabia o caminho. E quando chegou de novo na placa do Sítio da Cascata, ele queria seguir em frente de novo. Não, pai, é pra lá, a gente já passou por aí...

Depois de quase voltar pro Sítio da Cascata, achamos o caminho. E foi assim que chegamos de volta em casa, em Lomba Grande, às 8:50 da madrugada.

E foi assim que o Calil conheceu uma parte da Lomba.

Vocês acham que os gaúchos são bairristas? É porque não conhecem os lombagrandenses...

Natália Cristina de Almeida Souza
Enviado por Natália Cristina de Almeida Souza em 10/04/2010
Reeditado em 31/05/2010
Código do texto: T2189376
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