Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany o Mestre dos Mestres das Carrancas

Começo esta homenagem ao Mestre Guarany, parabenizando todas as pessoas que participaram do ideal que foi a criação da Oficina do Mestre Guarany, que através dos seus voluntários que tão pedagogicamente ensinam a esta juventude ávida por artes, da Cidade de Santa Maria da Vitoria. E isto, com certeza não deixará que morra , a arte do Mestre Guarany, o maior carranqueiro do São Francisco, fazendo com que ela seja perpetuada para as novas gerações.

Eu tive a felicidade conviver com o Mestre Guarany nos muitos cultos da Igreja Presbiteriana da qua ele juntamente com a Dona Rosa Oliveira ,seu Aldegundes Castro e outros,que foram fundadores.

Lembro-me de um dia ensolarado de abril de 2000, visitando a exposição dos 500 anos do Brasil, no Complexo do Ibirapuera aqui em São Paulo, onde observei e vi todos os tipos de artes dos mais renomados artistas do Brasil e do mundo inteiro, de objetos de até mil anos DC., documentos da libertação dos escravos como a Lei Áurea por exemplo, a carta de Pero Vás de Caminha, que foi o primeiro documento histórico do Brasil, objetos do cangaço e tantos outros. Até o áudio de uma das aberturas do ano letivo da Faculdade de Direito do Largo São Francisco ,cujo discurso fora pronunciado pelo ilustre baiano Ruy Barbosa e isto na sala de mídias; ouvi os trechos do discurso do Ruy, com aquele sotaque lusitano carregado, já que os eruditos brasileiros falavam o português fluente falado em Portugal. Impressionou - me, mas não me emocionou tanto quanto ver as carrancas do Velho Mestre com seus registros e datas, também sendo expostas no complexo do Ibirapuera. Isto foi, por demais, uma grande alegria e felicidade para mim, pois aquele era um momento muito importante da história deste Brasil Gigante e cheio de tantos contrastes e a cidade de Santa Maria da Vitória estava sendo representada, naquele instante, pelo seu maior e mais ilustre representante, o Mestre carranqueiro, Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany e isto levou-me a rebuscar na memória alguns momentos importantes da existência dele durante toda a minha infância, adolescência e início da minha juventude. Também havia algumas carrancas da cidade de Barreiras, mas me foge à memória, o nome do seu mestre.

Um dos momentos mais geniais que estão gravadas na minha memória era exatamente quando eu observava da janela da casa onde eu morava, o Mestre em suas dezenas de vezes indo para a escola dominical e em muitas delas tinha a companhia de Dona Rosa Oliveira, e este era um fato que se tivesse sido filmado, seria de um grande valor histórico . Em tantas outras vezes o via conversando com Dona Patrícia , Seu Aldegundes de Castro, Dona Nenzinha, Seu Hortelino, Seu Nelson Ferreira, Seu Jeza ,Dona Delza, Dona Fidelcina, Dona Lindaura, Maria do Zé do Pio, Dona Deti, Dona Mera e tantos outros membros daquela congregação cristã sempre nos finais de cada reunião onde normalmente se faziam as confraternizações, costumes ainda vigente nas maiorias das igrejas protestantes. Uma certa vez, em um dos cultos matinais dominicais, lembro-me como se fosse hoje, o Mestre solicitou para dar um testemunho. Isto foi mais ou menos no final dos anos sessenta e início dos anos setenta, cujo teor era de que Deus o estava chamando para ir ao encontro dele. O depoimento do mestre foi dado de uma maneira solene e poética; toda a congregação ficou em silêncio ouvindo o Mestre falar com o jeito manso e catedrático. Eu nunca tinha ouvido o Mestre falar tanto .Nós a criançada, ficamos meio que sem entender nada. Mais tarde alguém nos explicou: Ele contava que havia recebido um chamado de Deus e achava que a hora dele partir estava chegando ou seja: a morte dele estaria se aproximando. Graças a Deus que foi apenas um aviso sem mencionar o tempo, já que ele ainda permaneceu no meio de nós até 1985 maravilhando-nos com a sua arte.

Outro momento importante que eu sempre presenciava, era quando o Mestre, através da Rua da Lagoa, ia para o mercado fazer compras de alguma coisa e eu sempre o via do portão da casa onde morava. Ao ir para a igreja ele fazia o caminho pela Rua Rui Barbosa; ao ir para o mercado, ele sempre fazia o caminho,via Rua da Lagoa, a chamada rua dos doidos.

Outro momento gostoso era quando a criançada e eu resolvíamos ficar na janela do ateliê onde o Mestre criava e confeccionava a sua arte; e quando fazíamos barulho, bastava apenas aquele olhar que já conhecíamos do quintal da sua casa, quando a oficina ainda era lá, para desconfiarmos do teor do recado e cair fora, pois o silêncio e a concentração eram as marcas registradas do mestre ao laborar as suas carrancas.

O que era mais maravilhoso nestas observações do mestre laborando nas suas carrancas ,era a maneira orquestrada de como ele manuseava as suas ferramentas.Hoje tenho a certeza plena de que o Mestre laborava ,como se estivesse compondo uma sinfonia inteira, onde precisava de concentração e silêncio para cada toque das ferramentas, como se tivesse fabricando uma obra para a eternidade, como de fato o era.

Mais um outro momento que ficara marcado na minha mente, era justamente naquelas tardes quentes e ensolaradas de verão, nas quais eu ia para a beira do Rio Corrente, mais precisamente, embaixo dos juazeiros, onde eram os locais das construções de barcos, locais estes onde eu ia catar os cavacos para o pessoal de casa acender o fogo do fogão a lenha, e por várias vezes encontrava o Mestre, com o seu andar sinfônico em direção do Rio Corrente, vestido de calção, camiseta, calçando alpargatas, toalha no ombro e saboneteira na mão, indo tomar banho no rio. Era um costume da épocas as pessoas preferirem tomar banho de rio. Às vezes o flagrava tomando banho e parava observando juntamente com outras crianças, ou retornando para a sua casa com o mesmo andar sinfônico. O local preferido era a prainha que fica situada nos fundos da Almasa, que no passado era o lugar mais preferido para nadar e tomar banho.

Outro grande momento foi quando o Fantástico da Rede Globo através de sua equipe jornalística, esteve em Santa Maria da Vitória, em 1975,para fazer uma matéria com o nosso Mestre, e a partir daquele evento é que a nossa geração descobriu a verdadeira importância do Mestre Guarany, não só para o Brasil, como para o mundo, onde existem também as suas carrancas espalhadas.

Talvez o último maior momento registrado por mim, do Mestre, foi quando o primo da mãe de Jairo, Odair, juntamente com uma equipe de cinegrafistas do circuito Havaí de cinema, foi até Santa Maria filmar vários momentos do Mestre. Lembro-me bem: Joselino com seus primos e o pessoal de São Paulo e eu, em um dia domingueiro de final de ano, passeávamos de barco retornando das pedreiras tomando caipirinha no rio e ao chegarmos no porto de São Felix, alguém gritou: está na hora pessoal! O mestre sairá da igreja dentro de alguns minutos. Após esta fala, começou uma infernal correria do pessoal para iniciar as filmagens do Mestre saindo da Igreja e várias outras atividades. Confesso que até hoje eu ainda não pude ver as tais filmagens e gostaria de saber se elas ainda existem e se a sociedade de Santa Maria da Vitória já teve esta oportunidade .

É muito importante ressaltar que tanto nas caminhadas para a igreja, quanto para o mercado ou para o banho no rio, o andar do Mestre era sempre no mesmo compasso, como se nos passos dados, ele fizesse uma metrificação. Sempre andava calmamente e desta mesma maneira também falava; e também trabalhava. As pessoas muitas vezes comentavam que o Mestre não gostava de ensinar a sua arte, mas não há verdade nisso. Ele permitia sim que as pessoas o observassem laborando. O que ele não permitia, era o barulho e a algazarra, já que a concentração era a sua marca registrada. E a prova disso é que as primeiras pessoas que aprenderam a sua arte, o fizeram observado a cada detalhe das suas atividades, de maneira minuciosa. Como disse uma vez Paulo Freire: Ensinar não é transferir conhecimento, mas propiciar situações para que ocorra a aprendizagem e o Mestre, ao permitir que pessoas o observassem laborando nas suas carrancas, propiciava situações para a aprendizagem delas; e graças a isso, a sua arte está sendo perpetuada.

Este texto é em homenagem ao Mestre, aos seus netos e filhos , com os quais, muitos deles eu convivi. Também ao Jairo Rodrigues um dos idealizadores da oficina do Mestre ,e que hoje faz todo o tipo de trabalho de conscientização e cidadania. Também ao Joaozinho do SAAE, o Branco e o Gi (neto do mestre) que foram as primeiras pessoas que começaram a fazer a arte das carrancas. Também ao Junior(neto do mestre) que muito está empenhado em perpetuar a arte maravilhosa do seu avô e mestre, confeccionando carrancas e ensinando as novas gerações também a faze-las.Também pelas inúmeros colaboradores de Santa Maria que abraçaram esta causa maravilhosa, que é a Oficina do Mestre, ensinando na prática, não só a arte das carrancas como também a arte da preservação da natureza para a novas gerações.

Ao Joselino(Josa), tio do Jairo, que foi a primeira pessoa a ensinar-me que, o Mestre Guarany tinha que ser tratado como Mestre e não como ( véi) Guarany, expressão muito usada à época ,pois era um costume da nossa geração chamar as pessoas mais idosas ,de( véi) ou (veia) (de maneira carinhosa, mas desrespeitosa)e a partir daquele momento, passei a chamar o Mestre, de Mestre, afinal de contas ele é o Mestre dos Mestres das carrancas do São Francisco.

Mestre Guarany, o Eterno Mestre das carrancas.

Há a necesdidade de adicionar a este texto , a menção honrosa de um personagem muito importante na história cultural de Santa Maria da Vitória, um personagem que desde a mais tenra idade já mostrava a que veio no quesitohistórico cultural de Santa Maria da Vitoria. Estou falando do Joaquim Lisboa Neto, Kynkas Lisboa, que juntamente com o Jairo esteve muito próximo do mestre Guarany, tanto em vida bebendo da sabedoria do mestre, quanto pós morte cultivando a memória dele que é maior mestre carranqueiro do Brasil, conhecido no mundo inteiro.

São Paulo ,abril 2000 (quinhentos anos do Brasil)