O mito do peixe

Os olhos de Beatriz fitavam o infinito de sua imaginação, cercada aparentemente pelas paredes da cozinha cobertas com cerâmicas brancas.

- O peixe vem da praia meu tio? – Perguntou-me com o olhar curioso típico de crianças de cinco anos.

- Vem. – Respondi de forma seca e mais lacônica possível, como quem diz: “não me faça perguntas agora porque estou sem paciência”, omitindo traiçoeiramente a informação de que ele viria não propriamente da praia, mas do mar. Mas a doçura com que perguntava e meu sentimento de amor por ela me convenciam a explicar um pouco mais. Entretanto, antes mesmo que eu verbalizasse o raciocínio elaborado, ela atravessou-se com uma pergunta afirmativa:

- Você foi na praia, pegou o peixe, matou ele, assou e trouxe pra gente comer, não foi meu tio?

Parece que havia adivinhado minha explicação, embora continuasse discordando de minha posição ao insistir que o peixe viria da praia. Perguntava sorrindo, como se já soubesse e o fazia só pra ter a confirmação de um adulto. Eu fiz um sinal positivo com a cabeça e ela sorriu novamente como quem dizia: “eu já sabia!”. Seus olhos voltaram novamente para o prato. Tive a ligeira impressão de que agora ela olhava para o peixe de forma diferente, não sei se visualizando o processo descrito ou se me vendo como um assassino de peixes.

Com meus vinte e seis anos de idade eu não sabia exatamente que peixe era aquele.

- Que peixe é esse? – perguntei à minha mãe esperando uma resposta objetiva. Ela correspondeu à expectativa dizendo que era filé de merluza, mas Beatriz, ao mesmo tempo, atropelando a respiração, respondeu:

- É da praia meu tio!! – como que me repreendendo pela ignorância ou amnésia.

Acho que Beatriz acabara de construir um mito: o mito de que todos os peixes são iguais e que todos eles vêm da praia. Embora fosse mito, não era totalmente mentira, até porque eu sabia que ela chamava o mar pelo nome de praia e os peixes que nós costumamos comer têm lá suas semelhanças. Entendi que a construção do mito do peixe era essencial para que Beatriz compreendesse melhor aquele fato. Mais tarde, iria enxergar com mais nitidez outros detalhes, constatando, por exemplo, que não fora eu propriamente que havia ido à praia pegar e matar o peixe.

Beatriz acabava de tomar posse de um conhecimento vulgar, porque não científico, ampliando assim sua visão de mundo e, portanto, adquirindo mais consciência da realidade que a cercava. Tudo isso em alguns segundos, entre sorrisos, diálogos e ingestão de peixe num almoço rápido de tarde de domingo quente de final de inverno em Salvador.

Josué Mendonça
Enviado por Josué Mendonça em 20/08/2006
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