Guerra, capitalismo e contos na varanda

Um dos momentos mais marcantes meus junto a meu avô foi quando um irmão dele que morava em Brasília faleceu. Parece-me que era seu último irmão ainda vivo. Nós morávamos em Caruaru, Pernambuco, terra, aliás, onde ele havia nascido e vivido até seus últimos dias. Num dado momento, ele encostara-se à parede externa da sala, de frente para a rua, numa noite escura onde as estrelas não paravam de faiscar. Olhava para dentro de si, talvez buscando capturar lembranças e imagens do irmão que não via há tanto tempo. Uma expressão que me transmitia a sensação de que como era difícil para o ser humano experimentar a dor da perda.

Meu avô sempre fora um homem simples, econômica e espiritualmente. Quando jovem, participou do final de segunda guerra mundial. Às vezes, na varanda de sua casa, me contava um pouco dessa experiência. Ressaltava sempre a viagem de navio que fora longa e a chegada à cidade de Nápoles, Itália, que encontrara deserta e devastada. Percebia em seus olhos, sempre embebidos em lágrimas, um olhar distante, buscando reconstruir na memória alguns daqueles momentos. Contou-me que na ocasião em que foi recrutado, deu um jeito de sair de Natal, Rio Grande do Norte, de onde viajaria para a Europa, para se despedir de sua namorada lá em Pernambuco. Como não havia autorização para tal, conversara secretamente com um oficial que lhe dera permissão. Na sua viagem de trem, vestiu-se à paisana para não ser reconhecido e então preso. Deu tudo certo.

Nas ocasiões em que me contava essas estórias, eu sentia que ele não gostava de lembrar das cenas tristes. Por mais traumática que tivera sido aquela experiência, ela se esforçava em buscar situações ali dentro que haviam sido engraçadas ou que pelos menos haviam se distinguido um pouco daquele cenário de apreensão e muitas vezes de terror. Contava-me que não havia muita opção de emprego naquela época. O Exército foi então o lugar onde ele encontrou condições menos difíceis de sobrevivência. Era, propriamente, o ganha pão. Ele se orgulhava em dizer que um comandante, por ocasião da seleção dos soldados, o havia elogiado, dizendo que ele havia se destacado dos demais nos testes realizados. Um dos testes consistia em responder qual o nome de algumas figuras políticas e militares da época. Segundo ele, o fato de manter-se sempre atualizado através de jornais que comprava todos os dias o havia preparado para aqueles exames. Hábito que se manteve por toda sua vida. Nos domingos, a cesta de artesanato da varanda sempre estava acomodando o jornal da cidade. Ele lia e fazia questão de manter as páginas sempre em ordem.

Um de seus momentos de felicidade foi quando um amigo do jornal noticiou suas bodas de ouro. O retrato que saiu estampado no jornal foi o de seu casamento. Os dois, jovens belos, (minha avó mais bela ainda), no começo de uma estória que duraria tantos anos. Um dos sonhos de meu avô era ter e ver o/a bisneto/a. E sempre cobrava dos netos. O sonho se realizou no ano de dois mil de dois, quando minha irmã mais velha levou Beatriz com menos de um ano para que ele conhecesse. Tenho certeza que foi um dos momentos mais emocionantes de sua vida que Deus lhe concedera. Quando lembro de ocasiões como essa, reflito sobre meus próprios valores. Muitas vezes nos vemos tão envolvidos com o corre-corre do dia a dia, com o trabalho e estudos que esquecemos de perceber toda riqueza humana que é nossa família, nosso entes queridos. Acho que uma das funções dos avós é justamente essa, a de nos lembrar dos valores familiares dos quais tendemos muitas vezes a nos afastar em favor de tantas outras banalidades que nos bombardeiam todos os dias.

Voltando à guerra, ele nunca me deu indícios de que sentira medo na época. Ou não sentiu ou o tempo não permitia mais expressões dessa natureza tantos anos depois. A impressão que tinha era que ele havia encarado tudo aquilo como uma missão, e uma missão da qual ele tinha plena consciência de que não poderia fugir. Eu conseguia ver através de seus olhos a destruição e desolação em que se encontrava Nápoles, quando de sua chegada. Ele falava com pesar, com dor, com angústia. Fora um momento em que constatara de forma chocante a crueldade e o terror que os homens são capazes de fabricar. Ele me falava com ênfase sobre um sentimento que os pracinhas (a força expedicionária brasileira) experimentavam e que eu, posteriormente,iria verificar ao ler livros de História: o sentimento de que o exército alemão era invencível. Havia de fato essa crença espalhada pelo mundo e, meu avô, não fugiria à regra como “vítima” desse mito.

Na verdade, não sei muito sobre o que aconteceu na Itália com meu avô, salvo o acidente que teve num carro onde alguns de seus companheiros morreram e ele quebrou a perna. Contou-me também que houve situações em que teve confronto direto com o exército inimigo, mas eu não tinha coragem de perguntar se ela havia realizado alguma baixa na tropa inimiga, do mesmo modo como ele também não fazia questão de tocar nesse ponto.

Da guerra, trouxe tristes lembranças, pavor aos comunistas, cicatrizes na alma com certeza, e algumas moedas antigas de mais de uma nacionalidade que me daria como lembrança mais tarde. Na estante da sala, sua foto ainda moço trajado de soldado. Guardava medalhas e condecorações.

Além de soldado, meu avô foi operário e mais tarde chegou a fabricar, em casa, caixas de papelão para embrulho de vestes de noivas e afins. Embora contasse com meios técnicos bastante rudimentares, a eficiência e destreza com que trabalhava compensavam qualquer efeito adverso. Foi ele quem me ensinou a “arte” de bater um martelo e quem me introduziu no mundo capitalista ao fazer uso de remuneração como contraprestação por meus serviços prestados de transporte manual de tijolos da calçada para dentro dos muros de sua casa.

Josué Mendonça
Enviado por Josué Mendonça em 20/08/2006
Reeditado em 20/08/2006
Código do texto: T221368