Limite da tolerância

Meu vizinho, José de Arimateia, é corretor de imóveis. Os amigos e colegas de trabalho o chamam de Ari, talvez para poupar alguns sons guturais, decorrentes da pronúncia extensa. Aos cinquenta e cinco anos, trabalha em escritório no centro da cidade, distante cerca de doze quilômetros de sua residência. Todo dia viaja em ônibus lotado e somente regressa ao lar depois das nove horas da noite.

A mulher de Ari, Maria Helena, é professora. Ensina português, na parte da manhã, em escola pública localizada na periferia da cidade. Também vai ao trabalho a bordo de ônibus superlotado, com problemas mecânicos, atrasando a chegada da abnegada mestra à sua casa.

Helena é uma mulher ainda jovem. Todavia, os quarenta e dois janeiros intensamente vividos, já lhe causam algum desconforto. Os músculos e as varizes das pernas reclamam das horas passadas para ministrar cansativas aulas do idioma pátrio, mal assimiladas por alunos de pouco interesse; as costas doem; os tecidos lombares e a região da coluna cervical agradeceriam compressas e relaxantes massagens; o cansaço decorrente de longos períodos passados em pé, diante da lousa desbotada, provoca-lhe sofrimento diário, enquanto o pó do giz aumenta-lhe os sintomas da alergia renitente.

Ari, ao sair do escritório, passa no boteco do Zé Dirceu para ouvir as últimas notícias do seu malfadado time de futebol, o Flamengo, e, ainda, para comentar sobre a próxima campanha política à Presidência da República, enaltecendo o valor de seu candidato, opositor da Dilma Rousseff, que anda na rabeira das pesquisas eleitorais.

No barzinho do Zé Dirceu, vez ou outra surgem umas moreninhas atrevidas, engraçadinhas e jeitosas. Uma delas terminou por fisgar o Arimateia. O anzol foi lançado com tanta precisão, que o rapaz passou a cuidar da aparência física. Às dezessete horas, diariamente, desce ao subsolo do prédio onde trabalha, para praticar musculação e tentar reduzir a barriguinha de chope, cultivada ao longo dos anos. Na Academia Prazeres, de propriedade do amigo Delúbio, um goiano da pesada, ele molda o corpo obeso. O Delúbio, do alto de sua consagrada experiência, aconselha-o a tomar o Viagra em suas relações amorosas; nas palavras de quem o usa para melhorar o desempenho sexual em declínio, o medicamento tem-se revelado um santo remédio.

Ao meio dia, Maria Helena desembarca do ônibus apinhado de passageiros; o ponto dista cerca de oitocentos metros de casa; antes, ela passa na escola dos três filhos, para levá-los consigo. Ao chegar a sua residência, desfaz-se dos sapatos apertados, atirando-os a um canto da sala, e inicia o cansativo trabalho de preparar o almoço dela e das crianças, sem esquecer o prato do Ari, deixando-o no forno, para ser aquecido quando o maridão chegar faminto, à noite.

Servido o almoço, Maria lava a louça, varre a casa, higieniza os banheiros, passa a roupa da família, espana os móveis, arruma as camas, prepara as lições dos meninos e corrige as provas dos alunos. A jovem senhora sente-se exausta; o cansaço consome-lhe as forças, as dores maltratam-lhe o corpo, as varizes das pernas ardem, os olhos choram e as preces feitas ao Senhor consolam-lhe o espírito e renovam-lhe o ânimo.

Afinal, amanhã será um novo dia.

Igual aos outros.

Que sorte!

Arimateia retorna a casa dizendo-se cansado, queixando-se do corpo dolorido das horas de ginástica na academia do amigo Delúbio, resmungando algo inaudível; reclama da demora de ser servido o jantar, do barulho das crianças que ainda não estão dormindo, e de Maria Helena, que geme, queixando-se das dores lombares e nas articulações do corpo, excessivamente castigado durante a labuta doméstica.

- Oh, mulher, por que reclamas tanto? Que fazes durante a tarde? Passas o tempo numa boa, enquanto eu, coitado de mim, trabalho árduo na imobiliária, e ainda tenho de enfrentar a maratona de exercícios na academia de ginástica, esforçando-me para recuperar a saúde, por recomendação médica.

Maria Helena nada disse em resposta à insensibilidade do marido aos seus esforços diuturnos. Ela não deseja discutir àquelas horas da noite. Na manhã seguinte, terá de acordar cedinho para preparar o café, o lanche das crianças, levá-las à escola, ministrar aulas a alunos desatentos, preparar o almoço e o jantar, cuidar da casa, lavar e passar a roupa da família... Tudo será repetido à exaustão, como sempre!

Ari aguarda para ser servido da refeição aquecida no fogão próximo. Uma sopinha, à base de verduras e legumes, está pronta; quentinha, uma delícia, preparada pela dedicada esposa. Maria Helena olha para a panela, retira-a do fogo e, sem medir as consequências, entorna o conteúdo da vasilha na cabeça de Ari. Ele, surpreso, sentiu que a mulher, cansada, desabafara toda a sua frustração.