Era uma vez...eu.

Sentado na poltrona da varanda da clinica, seus olhos percorriam o nada...do que fora restava seu corpo esguio, magro e alto, e um imenso vazio.Percorria sem ver o que o rodeava, enfermeiras, pacientes, criados, paisagens e a nada reagia, nem a luz ou escuridão, nem aos sons, ou movimentos, em raros momentos acompanhava fatos, mas como raios de luz iam e viam não deixando lembranças em sua mente.E voltava a recolher-se na redoma que o engolia e nela deixava-se ficar alheio ao mundo.Sem vida, acompanhava a enfermeira, quando o levava a fisioterapia, ou ao banho, seguindo-a docilmente em seus passos vacilantes de quem cansado, sequer sabe onde pisa e onde o levam.Suas necessidades resolvia sem se aperceber, em si mesmo, há muito perdera o controle de seus intestinos e bexiga. Iniciara sua doença timidamente, com esquecimentos pequenos que foram avolumando, de tudo esquecia, das pessoas, seus nomes, rostos, esquecera como andar pela casa, já não sabia onde eram seus aposentos, seu pomar, nem sequer sabia quem era.Recebia raras visitas que iam se tornando mais raras.Criara os filhos para darem valor ao que tinham e não ao que eram, agora colhia os frutos, todos cuidavam de suas ricas, conturbadas e vazias vidas e davam a ele o conforto de uma clinica.Ao mesmo tempo que lhe davam o conforto de um lugar de luxo usufruiam do conforto de sua ausência, e assim o viam cada vez menos, ano após ano até que um dia a vida o tirasse de seus caminhos, e pudessem em suas rodas sociais recordar apenas o pai, trabalhador e honesto de quem herdaram esta vontade de progresso de ganhar dinheiro, esta gana indomavel de vencer a qualquer custo, a quem haviam dado todo o conforto na doença. Suas roupas não condiziam com sua figura, não lhe caia normal um “robe” de seda, pijamas finos, sandálias de couro acolchoadas e cachecóis de pura lã, seu rosto rude, vincado de rugas seus dedos nodosos e mãos fortes e secas, denunciavam a origem de quem tratara da terra, nela plantando seus grãos, colhendo seus frutos, açoitando seus matos.Era esta a forma que tinham os seus de pagar-lhe a educação que tiveram, seus carinhos e sua atenção. Numa sucessão de coisas raras, em uma das visitas da filha a tinha reconhecido e visto, não a reconhecera de imediato, seus olhos estavam puxados para cima, assim como as maçãs do rostos, seus lábios tinham contornos enormes, apenas os olhos a angustia dos olhos a revelavam, uma cirurgia desnecessária melhorava seu ego na mesma proporção lhe tirava a identidade.Ja não era a menina que deixara, nem a mulher que o havia deixado na clinica, tentara falar mas de seus lábios só balbucios ininteligíveis de seus olhos lagrimas escorreram, apertou as mãos da filha que chorava, e tentava lhe falar retribuíndo o aperto das mãos... vendo em seus olhos, lentamente a súbita chama da vida se apagar e morrer...depois nada...ele voltava a sua redoma e ela a sua vida. Sentado na poltrona da varanda da clinica, na angustia muda e inexpressiva de tentar se encontrar, o lugar é o mesmo o homem é o mesmo, apenas o presente mudou. Olhava sem ver a paisagem ao redor, céu, nuvens, flores arvores nada via, como nada via ao olhar dentro de si... se numa hipótese remotíssima pudesse escrever sua vida haveria de ter por titulo...

Era uma vez ...eu

Carlos Said

Dias de Sampa

Recanto das letras

Carlos Said
Enviado por Carlos Said em 25/04/2010
Reeditado em 27/01/2015
Código do texto: T2218690
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