De Quatro em Quatro

Quando a bola furou a rede, Maurício sentiu com’uma bala lhe perfurasse a carcaça. Sentiu a dor aguda, um beliscão em suas artérias principais, um palpito frenético em seu peito, secura na garganta, nos lábios e na lingua, olhos esbugalhados como quem mira inconformado a uma imagem que não precisava, não podia aparecer. Os minutos passam e sua expressão apenas se degrada graduativamente, envelhece meses em segundos, alguns anos mais velho até o final da partida. Apita o juíz, Brasil vai para a casa mais desta vez pelos pés da França. Maurício, homem de sessenta e três anos, cinco filhos e sete netos, ainda casado com a mesma musa desde os quarenta anos de idade, motorista de perua escolar e taxista aos finais de semana, começa seu luto.

Chorou tanto que seus olhos incharam, avermelhados, bem como suas narinas, agora polacas, e a face esbranquiçada do nervosismo passado agora entra em palidez d’um perdedor. O estádio se esvazia de brasileiros aos poucos, mas os franceses permanecem comemorando com os jogadores de sua Seleção. Maurício desce as escadarias silencioso, visando apenas o piso e, esporadicamente, prestando atenção a não sair por saídas erradas. Os demais torcedores o acompanhavam, alguns indignados, outros raivosos, mas todos tristes. Todos tristes pelo fracasso da Seleção...

No entanto, ninguém se mostrava mais triste. Maurício, quando começou a gostar de futebol, aos quinze anos, gostou por ver o Brasil ganhar na Suécia, contra a Suécia, em 1958. Logo, viu Pelé ganhar as copas de ’62, se dar mal na de ’66 e dar a volta por cima na de ’70. Esperou vinte e quatro anos, pensando que talvez nunca mais visse a vitória de seu time dos sonhos, mas logo esta ocorreu, em 1994. Em 1998 perdemos, mas chegamos em segundo lugar, o chôro não foi tão terrível. Em 2002 viu Brasil fazer sua melhor campanha futebolística de todos os tempos, ganhando o Penta-Campeonato. Orgulhoso, viu a canarinho bater todos os títulos da temporada, Copa América, Copa das Confederações... Só nos desclassificamos das Olimpíadas, mas desta zica ainda nos falta sair, o único título que não temos como a Nação Futebol.

Em 2006 todos pensavam que ninguém podia conosco, inclusive Maurício. O desapontamente foi sério. Corações partidos...

À saída do estádio, nosso herói nem se deu conta quando lhe encostaram a mão ao ombro e chamaram seu nome. Não sentiu nem ouviu absolutamente nada, preso no mundo do inconformismo. Com um segundo puxão mais forte, todavia, percebeu que um velho amigo, desaparecido havia anos, o chamava.

‘Maurício, meu velho! Quanto tempo!’

‘Ah... Nossa! Alberto! O que você faz por aqui, tchê?’

‘Ora essa, assistindo ao jogo! Que cara é essa? Adiante, amigo, essa Seleção jogou muito mal, quer dizer, nem jogou! Somos Penta, velho, relaxa. Próxima Copa damos a volta por cima. O que você tem feito de bom?’

Maurício não gostou da resposta, sua face não mentia como omitia sua boca. Educadamente, apenas respondeu à sequência de perguntas do velho amigo.

‘Tenho torcido para a Seleção... De bom, só isso mesmo.’

‘Ah, velho, não vem com essa, não é possivel. Como a vai a Silvinha e os pequenos? E o Eduardo, Gustavo, a Cinthia e o René?’

‘A Cinthia e o René também casaram. A esposa de René acabou de dar luz a um bebê forte e saudável, o chamarão de Sansão (não sei se foi brincadeira quando me contaram) quando o batizarem. A Cinthia já tem duas meninas, lindas, pena não ter trazido as fotos comigo...’

‘Ora, Maurício, que notícias excelentes! Então? Pense nisso, nas coisas boas da vida.’

‘Você perguntou o que EU tenho feito de bom, não meus filhos ou netos. Coitados, eles só me trazem alegria, fazendo de bom ou de ruim aos olhos de quem seja. Já eu, amigo... Eu não... Torcer pela Seleção é o que faço de bom.’

‘E Eulália? Não vai me dizer que ‘não faz nada de bom’ com ela tampouco.’

‘Faço nada... Chego em casa morto, não tenho mais essa disposição toda. Fim de semana que é bom eu viro a madrugada, e durante o dia ela tem que sair pra isso e pro outro, e nunca dá tempo... Nunca dá tempo...’

‘Sei...’

‘Sabe mesmo? Como vai você, Alberto? Sumiu, hem?’

‘Sumi, sumi... Eu sou assim mesmo, velho, você me conhece, mas comigo vai tudo bem, solto e alegre pela vida, morando na Alemanha já há oito anos... Que bom te encontrar, só queria ver você melhor, está preocupante essa sua expressão...’

‘Não se preocupe, não tenho remédio.’

‘Claro que tem, Maurício, como me diz coisa dessas de novo... Ainda mais porque eu acho que você tem sim mais coisas boas a contar.’

‘Tenho nada, devo minhas cuecas, até, literalmente, as penhorei para poder ter uns dias a mais de conta aberta na padaria. O aluguel vamos empurrando com a barriga, o dono do apartamente já tentou aumentar pela terceira vez, mas por enquanto conseguimos impedir. Ainda trabalho, muito, e se tiver que me aposentar algum dia... Nem quero pensar nisso... Ainda se conseguisse fazer como você e me mudar pra Alemanha...’

‘Não diga isso, tudo tem seu preço, e brasileiro que é brasileiro não foge à luta!’

‘Não foge? Não foge??? Claro que foge, fugimos hoje, esses palhaços nem jogaram futebol!’

‘Verdade... Fugiram mesmo, mas e você com isso? Porque isso te afeta tanto?’

Maurício não respondeu. Alberto não entenderia das memórias que só existiam na cabeça de seu velho amigo. Não entendia como seu pai o havia educado através do futebol, os valores mais importantes, de participação em conjunto, de esforço implacável e força de vontade superior, determinação a um objetivo fixo e prática, muita prática, para sempre aperfeiçoar os movimentos... Não entendia como isso o lembrava do dia em que conheceu sua esposa, ainda xingando mundo e raimundo pela sacanagem violenta que fizeram com o Rei do Futebol em 1966, mesmo assim sendo aceito por Eulália como um dos mais finos homens de sua vida. Não poderia perceber o que sentiu ao lado de seu filho mais velho em sua primeira copa, ou como era o ritual em sua família às vésperas dos jogos. Não teria como observar em pensamentos internos a razão de tanta paixão, pelas glórias, pela motivação e pelo prazer das vitórias, o sofrimento com as derrotas, a indignação com os empates... Sempre acompanhado das pessoas mais importantes de sua vida, sempre trajado de memórias inesquecíveis, de feitos mágicos, de recordes miraculosos, ele e a Seleção n’uma só foto, em 1986, ao lado de Zico, por exemplo. Deixou quieto...

‘Bem, Maurício, você fica por aqui até quando?’

‘Até o dia 9... Comprei ingresso para todos os jogos, quer?’

‘Não... Eu viajo a Amsterdã esta tarde, com a senhora... Quer dizer, a senhora que é minha senhora quando estou longe da senhora... Entende, não é mesmo?’ E sorria Alberto pronunciando a explicação.

‘Entendo perfeitamente...’

‘Próxima Copa tem mais, Maurício, bola pra frente!’

‘Eu sei... Um fortíssimo abraço, Alberto. Espero que as coisas continuem como sempre pra ti, com esse sorriso maravilhoso. Mande um beijo às suas duas senhoras, (sorriso forçado).’

‘E você, meu velho, mande um beijo a todos os seus, família linda.’

‘Concordo...’ E assim se despediram um d’outro, imediatamente se perdendo dos campos de visão meio ao tumulto francês e a crosta invisível da tristeza brasileira. Dentre os rostos e dentre as lágrimas, os seus eram mais tristes e as suas as mais úmidas. O dia assim se acabou...

No dia 22 de Dezembro de 2006, este mesmo ano, Alberto passeava por São Paulo, entre os locais que costumava visitar enquanto ainda morador do Brasil, e ouviu falar de Maurício, apenas seu nome lançado ao ar em conversa alheia. Perguntou como estava. Responderam:

‘Você não soube? Mauricio tinha câncer fazia tempo, mas nunca contara a ninguém. Parece que quando decidiu viajar à Alemanha e gastar todas as suas economias, já estava em fase terminal... Faleceu semana passada, acompanhado de Eulália e Gustavo... Estão todos muito tristes.’

Alberto compreendera, apenas então, as lágrimas do torcedor. Mauricio Resetta fora o maior torcedor da canarinho de todos os tempos. Faleceu jovem. O enterraram com a camisa da Seleção... E a foto de Parreira colada ao seu traseiro de face virada para cima, com as palavras ‘muito obrigado, Parreira’ inscritas na parte traseira da fotografia.

RIP Seleção... Até 2010

RF

(Julho de 2006, www.osintensos.blogspot.com, Todos os direitos reservados a Shaping Performances, Inc)

O Intenso
Enviado por O Intenso em 22/08/2006
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