Até então

Até então

Até então você escreve, mesmo percebendo não ser

digno de nota a quem deveria lhe corresponder uma atenção, para ao menos fingir que sua existência tem serventia no campo do afeto e que o afeto é fato para ser celebrado.

É quando você não mais espera e pressupõe um movimento.

Até então você escreve, porque tem sido assim desde o começo dessa aventura, alguma coisa cola e a única maneira de se livrar dela é colocando-a no papel.

É lua cheia, e aquela mulher fugidia, que você queria em seus abraços, talvez nem mais exista, bem como as noites estreitas e o verbo trôpego esquecido do alvo.

Você escreve e os próximos emudecem ou escarnecem à socapa, pretendendo que escrever signifique não existir e que todos os mundos são dignos de festejar mas você não, você é um mundo à parte.

Até então você escreve, começando a intuir que comunicar pode ser tão imperativo quanto desajeitado, e nem seria o caso de perguntar a quem cabe o desfecho de um chapéu de palha estendido para platéia nenhuma, porque até então quem escreve é você.

Foram-se os dias das suas lágrimas borrarem a folha de papel e do seu riso incandescente alardear que a alegria é a semântica dos fortes e a esperança dos fracos.

Até então maio está prestes, você já convive com os paradoxos e aceita que eles envolvam os paralelos estabelecidos ao longo de um caminho cujo centro é você, você é o sol, até então amanhã não existe embora você queira muito no entanto soa no ritmo certo sem vírgulas, porque alguma coisa nesse mundo tem de funcionar do seu jeito.

Nem que seja por um instante apenas.

Até então você escreve, como um cavalo puxando carroça e ansiando pelo momento de chegar logo ao estábulo, como uma pequena ave que se orienta pelas estrelas durante um longo vôo noturno, como um cachorro que pára de casa em casa sem saber qual é a sua ou qual poderia ser a sua.

Até então você sabe que listras servem em toldos e que a mecânica não poderá toldar-lhe a melodia disfuncional, pois sua servidão só alcança o indulto ao descolar as coisas que colam, nem que seja para você mesmo.

Até então, instantes atrás você teve uma idéia genial, tão fugidia quanto a mulher cujo nome você já esqueceu, e você anda e desanda, mas escreve, procura a pausa, o pulso, o esboço, deve haver um motivo, nalgum lugar, assim como deve haver uma planície, será o seu merecido retiro, sua linha do horizonte azulada, o momento de dançar anárquico com os que deveriam se amar acima de tudo.

Até então será.

Será também o instante de relembrar os fatos ocorridos, mansamente, feito um bovino mascando a erva verde da planície cujo fim não existe.

Por um momento você pára, pensando se vai escrever ou não, ao olhar a folha pautada sobre a mesa. Há um segundo de hesitação e lhe ocorre um pensamento.

Até então você põe em movimento.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 28/04/2010
Reeditado em 30/08/2013
Código do texto: T2224594
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