ESMOLA

Via-os quase diariamente. Um garoto de aproximadamente oito anos e um senhor... não sei precisar a idade, mas não me parecia ser muito idoso. Sempre naquela composição clássica de um menino e alguém bem mais velho e cego sendo por ele guiado.

De tanto que os via passar pelas calçadas do centro, eu algum dia tive uma dúvida se o velho cego estaria sendo orientado por um menino mudo. O garoto ia segurando a guia e o velho atrás respeitando devidamente os mandos da criança. Se era um cruzamento ou se estaria próximo de alguém de onde sairia alguma moeda, o garoto de estalo parava e nada dizia. Naquela circunstância, se saísse o dinheiro, pé na estrada; caso não, também depois de aguardar certo tempo de carência, digamos. Nenhuma palavra.

Aquilo mexia comigo. Era oculista e talvez pudesse fazer alguma coisa para ambos; não que eu pudesse curar uma eventual surdez do menino, mas se livrasse aquele senhor da sua incapacidade, também dispensaria a criança daquela lida. De tabela.

Um dia, na saída da Clínica, deparei-me com eles. Ora! Um doutor vai dar uma gorda esmola, pode ter imaginado o garoto. Como sempre parou de estado e estático ficou sem dizer nada. Tomei a iniciativa de dizer-lhes:

- O senhor tem um problema nas vistas e eu me proponho a fazer um exame e se for alguma coisa que estiver ao meu alcance, o senhor voltará a enxergar, sem nada me dever por isso.

E aquele senhor mal vestido, chapéu de palha à cabeça, calças arregaçadas em duas ou três dobras e puídas e nos pés somente a sola calejada de tanto “lixá-la” no cimento áspero. Como estava ficou; cabisbaixo. Passou a mão pelo queixo, barba rala, e não esboçou nenhuma atitude de alegria, tristeza; enfim, não notei no seu rosto nenhuma emoção. Talvez até o seu semblante ficasse mais duro.

- Imagine o senhor, doutor! Se eu ficar bom, voltar a ter as vistas na claridade e depois? Como é que eu vou viver? Quem mais vai dar esmola pra mim? E quem vai dar trabalho para uma pessoa já como a minha idade? Agradeço muito ao senhor, mas não aceito não. Deus quis que assim fosse e eu vou seguir direitinho a sorte que Ele me deu!

Nada mais me disse. Nada mais lhe disse. Não dei a esmola como até hoje faço. Não me custa dar uns centavos a um pedinte, mas na minha concepção é tremendamente deprimente para quem dá e para quem a recebe. Faz mal às minhas entranhas, ou algo como todo o meu ser. Continuei vendo-o e o garoto, sua boia salvadora e que nada tinha a ver com os infortúnios, vagando pelas ruas. Depois sumiram.

Uma noite lembrei-me deles. Não sei porque coisas ficam grudadas tão firmemente na nossa memória que é difícil ou quase impossível desgarrar-se delas e me ocorreu um revertério crucial no meu julgamento sobre o possível pobre homem. São lucubrações; são as fascinantes nuances de um cérebro vivo que vira e mexe está se modificando e apurando o seu sistema de análise. Seria um upgrade?

Imaginemos que aquele senhor não fosse cego. Como tal poderia muito bem continuar tocar a sua vidinha já delineada desde o seu nascimento devido as condições sociais - não às genéticas - veio para trilhar um caminho sem muitas opções, sem esperanças... Ah! Sem nada, sejamos bem objetivos. Lutou com tudo o que tinha de direito para se manter, crescer, ser gente igual a todos, mas o seu mundo não permitiu: azar; nasceu pobre. Quase certo ter algum problema grave na visão, mas e se eu o examinasse e descobrisse a sua verdade trancada à chaves? Como ele poderia continuar, mesmo se equilibrando nas rebarbas da vida?

Fez a sua opção. Eu não trairia a minha condição de ter exercido uma profissão encarada por mim como quase um sacerdócio, sem nunca passar pela minha cabeça ser como os verdadeiros. Retirava deles algumas coisas que um simples mortal poderia furtar sem cometer crime inafiançável. Sabedoria. Comportamento ético. Humildade. Mas e ele? Não me conhecia, já teria passado por tantos desenganos, vis amigos, trancos daqui e dali e desacreditasse da humanidade como um todo e simplesmente precisava sobreviver. Certamente já não confiasse em mais ninguém a não ser alguns familiares, destaque ao seu fiel guia. O Criador deu “enes” opções para nos mantermos vivos. Ele teria agarrado a uma delas; mandou ética e todo o resto pros infernos e pronto!

Não sei mais deles. Talvez os seus últimos telômeros disseram-no adeus e ele se reverteu num punhadinho de elementos químicos devolvido à Terra avarenta. Mas comigo ficaram – até quando meus genes desistirem de mim - cada vez mais desafiantes as interrogações: é fácil viver? Ou como: é difícil viver? Ou quantos e quantos critérios qualificam-nos para considerarmos dignos viventes? Manter-nos vivo é o limite da ética? Ela é mutável? Existem outros limites?

Relembremos o desastre aéreo com atletas uruguaios nos Andes...

- Senhoras e senhores: façam as suas apostas!

Quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Dbadini
Enviado por Dbadini em 29/04/2010
Código do texto: T2226561