O outro não existe

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Sei que cada dia está mais duro andar pelas ruas, viver nas cidades, conviver, compartilhar, viver as diferenças com tolerância. Por quê? Será a pressa desnecessária e doentia? A violência? O medo de ficar pobre, a vontade de ficar rico? A correria pela sobrevivência? A miséria humana? A profunda preocupação com futilidades. Pode ser.

Egocentrismo ou egoísmo. Será? Mas isso não deixa ninguém literalmente cego. Pensei numa modalidade da psiquiatria – oligofrenia. Que, rasteiramente, ou abusando da licença poética, é um não estar no mundo, não saber de si no meio, no tempo, no espaço. Analfabetismo funcional... Será oligofrenia coletiva? Isso existe? Peço socorro ao nosso psiquiatra de plantão neste grande hospício, dr Casado. Na verdade, não existe, mas “é uma boa provocação”.

Então... vou por aí. Até porque não tenho obrigação com a ciência, apesar de amá-la. Como diz o mestre Rubem Alves, vamos brincar de filosofia e como cantava Violeta Parra, lo que puede el sentimiento no lo ha podido el saber.

Já não nos sentimos. Quanto mais gritamos menos ouvimos e quanto mais olhamos menos vemos.

O fura-fila e o contra-mão insistem em achar que somos todos invisíveis ou ele é esperto e nós somos otários.

Aquele que entra no elevador ou no ônibus, quebra, a todo custo, a lei da física, em que dois corpos não ocupam o mesmo espaço ao mesmo tempo, querendo entrar antes do outro sair.

O atropelado no sinal fechado, porque o motorista acha que pode atravessá-lo como nos filmes de ficção-científica.

O nem bom-dia ao colega de trabalho, tamanha é a nossa secura. O olhar triste do amigo que nem percebemos, tão envolvidos por nosso umbigo maior que o mundo.

O grito de socorro do suicida batendo na nossa porta e achamos que ele só quer chamar atenção. E quer mesmo, pra se salvar.

O som nas alturas de quem pensa que é liberdade obrigando o próximo a ouvir suas músicas cretinas.

A fila dupla impedindo carros inexistentes de trafegar. A buzina tirando o sono de quem faz amor até mais tarde, ouvindo o samba suave do Chico Buarque ou quebrando o silêncio dos hospitais.

Na calçada, quando há, as rodas se formam e ninguém te vê. O jeito é arriscar a vida no asfalto, porque ninguém se move.

O vizinho fazendo barulho de manhã, de tarde, de madrugada, imaginando que é o único morador do planeta.

O tropel no cinema, você assistindo um belo filme existencialista e a manada batendo os cascos.

Quem dorme ao seu lado ou sonha acordado e você recriminando o sono alheio, que pode ser um pesadelo.

O pedido silencioso de carinho que nossa alma insensível nem sente. O afeto negado.

O filho querendo brincar e nós distantes perdendo tempo com alguma bobagem.

O outro não existe, “eu sou centro do universo”.

Não vemos, não ouvimos, não sentimos. Que pena! E o outro está bem ali. Aqui do lado, na frente, embaixo, entre, dentro. Embaixo do nariz, diante dos olhos, perto do coração.

dori carvalho
Enviado por dori carvalho em 02/05/2010
Reeditado em 14/05/2010
Código do texto: T2231957
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