O encontro no Trem

O trem jazia ainda parado entre trilhos repartidos,

corroídos pela ferrugem dos tempos com suas chuvas e seus sóis nascentes,

poentes, luares cheios ou mingüantes, quanto tempo intransigente. No mesmo vagão, sentadas num só carro, esperavam semi-aflitas duas mulheres de bem. A uma dava colo e peito a um lindo bebê, há pouco recém nascido, e a outra apenas fingia ler um livro enquanto de soslaio reparava na criança. As duas se encontravam vagamente em olhares. No relógio, o décimo quinto minuto escorria e se ia. Afora, o sol ardente suava as testas dos maquinistas e maquinários trabalhando com os trilhos e com o trem. Ninguém se atrevia a enfrentar a ardência solar.

Neste mesmo vagão, a mãe tinha estatura baixa, corpo franzino, rosto redondo e olhos puxados, claramente oriental como seu pequeno filho. A curiosa leitora sustentava a tiara seus cabelos dourados e espiava com olhos azuis, lábios vermelhos e rosto pálido, semblante pseudo saudável, praticamente enferma. Tremiam seus dedos com as páginas – poucas páginas passadas livro adentro. O infante dormia, oriçando os mamilos escuros e inchados da mãe. O livro jazia ainda desperto, poucas palavras digeridas pela leitora cabisbaixa. A viagem, ainda longa.

‘Posso...? Posso...?’ Ao repente, a pequena asiática emite estas palavras gaguejadas, extraídas, certamente, da timidez e da dificuldade com o idioma norte-americano. Apontara o livro da leitora. A leitora se assutou, a princípio, mas ao perceber o intuito da estranha co-passageira, fixou seus olhos na capa do próprio livro antes de aproximá-lo aos olhos de sua companheira de viagem, e logo sorriu.

‘Você tem tempo pra ler, ainda?’ Perguntava, procurando proporcionar algum conforto maior à mãe, já que o bebê que não mais mamava, passara ao colo baixo, sobre as coxas de sua progenitora, e dormia com’um anjo. Nenhuma das duas dominava bem o idoma do país. O sotaque da asiática, para o conhecedor, advinha de alguma província chinesa. Um tom mais puxado, forte, quase arranhado, ecoando mais da garganta do que de qualquer outra parte de sua fonética. O sotaque da loira, estranhamente, soava latino. Contudo, a pequena chinesa não adivinhava de sotaques, e bem pensava estar conversando com uma norte-americana.

‘Lia muito... Na minha terra, eu lia muito... Márquez...? Gabriel, não? Gabriel Márquez... Memórias de minhas... Minhas...? Que palavra essa?’

‘Putas... Prostitutas, hm... Como geisha, mas americana... Sabe, Geisha...?’ A sabida brasileira tentava explicar o desagradável.

‘Ah! Geisha americana! Puta* (*em seu idoma, e gesticulava com a mão o que seria a moção do agradável) Sim! Posso...?’

Novamente, a brasileira fixava os olhos no título do livro, dessa vez com sorriso estendido, como logo estendia o livro, entregando-o à mão livre da pequena mãe. O trem ainda jazia inerte, e os trabalhadores descansavam rebuscando sombra dentro de um dos vagões de carga. Em troca, a brasileira se oferecia:

‘Posso...?’ E apontava o bebê. Os olhos da chinesa espiavam o livro por onde sua mão mal cabia, e ao mesmo tempo se entre-esbugalhavam. ‘Segurar meu bebê?’ Perguntavam seus olhos. Até que contestou, e para seu melhor conforto:

‘Pode...’ E com todo o cuidado do mundo, passava o bebê em troca do livro.

Por duas horas, o trem se quedou roto e inerte, até que, com o esforço inabalável dos engenheiros ou pedreiros ou obreiros, começou a se movimentar. Neste tempo, o bebê dormia e a brasileira o acariciava. Maria se apresentara, mas se calara, ninando um suposto filho não tido, agora emprestado. Ni tampouco dissera mais do que seu nome, e prosseguiu sua leitura. A resposta da pergunta anterior não se completara. Não tinha tanto tempo para ler como antes da gravidez. Sua terceira gravidez, o que seria motivo de graça e alegria, mas acabou se tornando o verdadeiro motivo de seu refúgio. Enquanto a viagem seguia e se terminava, a brasileira brincava de mãe e a chinesa matava saudades das putas tristes de Gabriel Garcia. Assim, nenhuma das duas soube nada mais da outra, mas este narrador que vos narra, cá lhes passa pensamentos e histórias incontadas.

Maria fugira do Brasil após terrível desfortuna do destino. Violentada, pobre menina, engravidara sem querer, mas por obrigação de pais, amigos e vizinhos devia manter-se grávida até gerar o fruto dos que a violaram. O amaria, certamente, como ama qualquer criança, mas jamais se esqueceria da cicatriz que nunca cicatrizaria, e jamais se lembraria da inocência ali perdida, entre pedras e barro e mato, rua aqui ou acolá da ‘Calle del Bairrio.’ Fugira do Brasil para não ter de carregar este fardo penoso, porque por decisão e graça quiçá divina, descobrira que seu corpo a si pertencia, e possuía bem seu útero como era deusa do destino de sua cria, descobrindo assim também alguns locais reconhecedores do direito de sua escolha.

Ni, por sua vez, fugira da China, de uma vila com nome engraçado para leigos como eu, imemorável. Ironicamente, fugia pelo exato mesmo motivo. Certo dia, descobrira que possuía seu ventre e seu corpo, e era deusa do destino de sua cria. Decidira que o controle de natalidade era injusto, e que ela tinha o direito humano de lutar pela vida de sua terceira criança, em sua descuidada terceira gravidez. Fugia das garras de seus amigos, familiares e de seus livros... Perdera tudo, mas ganhara um belo filho, o tão sonhado... O tão almejado...

Maria e Ni, chegadas cada qual em sua mesma coincidente estação novaiorquina, re-trocaram seus pertences. A pequena leitora se deleitara com um belo livro, e o devolvia em troca de sua maternidade resgatada, com a devolução mútua de seu lindo bebê. Nunca mais se encontraram. Nunca souberam de como, naquele vagão, baixo mesmo sol ardente e trem roto, afetaram uma a outra. E nunca se soube do pequeno marco histórico dado em tal momento: Pois, duas mulheres demonstravam solidariedade, lucidez, humanidade e, acima de tudo, independência. Mais um sussurro. E o trem segue viagem...

RF

(Marco de 2006, Os Intensos, www.osintensos.blogspot.com, Todos os direitos reservados a Shaping Performances, Inc)

O Intenso
Enviado por O Intenso em 23/08/2006
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