A violência nossa de cada dia

O poeta Mário Quintana já escreveu, mais ou menos assim: o que me preocupa não é passado símio do homem, mas o seu futuro”, símio. Tamanha a “selvageria em que vivemos nas selvas de concreto e asfalto. E sabendo que os poetas são a “antena da raça”, vamos ao que interessa, pelo menos, pra mim que faço esta terapia semanal escrevendo, como quem pensa alto, estas mal traçadas linhas que você generosamente lê.

Ontem, 29, foi o dia do livro, dia 20 foi o dia do poeta. Nem eu me lembrava das datas. Mas, nas comemorações ficamos todos dizendo que a poesia nos salva, que os livros, a leitura, o conhecimento nos libertam, aprimoram nossos espíritos. Meu amigo Tenório Telles, sincero esperançoso que é, acredita piamente nisto e vive nos aconselhando para que não permitamos que aconteça o tempo da barbárie. É um dos poucos amigos que nunca discuti ou discordei ao longo de nossa irmandade, porém, hoje discordo, publicamente: não é o conhecimento que nos salva, são os caminhos que trilhamos, as escolhas que fazemos. Como agimos, como nos relacionamos. A decisão certa diante das encruzilhadas. Se não é isso, por que então existe tanto bandido, gente sem caráter e todos letrados? Olhando o retrovisor do carro da história a humanidade sempre viveu o tempo da barbárie. Da Grécia antiga, com todo o seu conhecimento, ao apartheid na África do sul, dos meninos famintos da Etiópia aos meninos fogueteiros das favelas do Brasil, da Roma incendiada aos senadores corruptos de Brasília, é tudo igual, é tudo parente. A história da raça humana é a história da barbárie.

Evoluímos na ciência, na tecnologia, nas descobertas da medicina, nos estudos sociológicos, mas na vida espiritual, nos relacionamentos, na convivência, nas tribos urbanas, nas fronteiras, no jogo de poder continuamos tão bárbaros quanto nossos ancestrais. Os fabricantes de armas devem ter orgasmos quando olham as balas caindo das metralhadoras e os senhores da guerra atingem o nirvana quando assistem a guerra na Somália, no Iraque ou Haiti. Dos conflitos tribais às guerras mundiais tudo é a mesma coisa. Exploradores roubando e criminosos matando. Isto nas lutas por territórios e poder.

Nos espaços urbanos, os homens e mulheres estão cada dia mais hostis, se matando, roubando, brigando. Vivendo uma guerra civil disfarçada que quase ninguém quer ver. O morro e o asfalto, as invasões e os condomínios de luxo se digladiando e se defendendo como podem. Andando por nossas ruas, quando você vê alguém sorrindo à toa, qual o primeiro pensamento que lhe vem? É doido! Mas a maioria que passa com olhares intimidadores, agressivos e expressões carrancudas passou a ser o natural, o comum, costume aceito como normal. O que me dá medo nestas ruas escuras / são os meninos violentos / e as meninas inseguras. Adolescentes enfiando estacas nos corações. A miséria embrutece os homens, como dizia Manuel Bandeira: meu Deus não eram bichos, eram homens. Não seria leviano em dizer que a culpa de tudo é a miséria, a falta de comida, a pobreza, o desemprego. Mas sim a miséria humana, espiritual, a juventude sem horizontes, sem curiosidade, sem anseios realizados, com adultos cada vez mais corruptos, asquerosos, desrespeitando a tudo e a todos.

Enquanto ficarmos jogando a sujeira por debaixo dos tapetes luxuosos, só teremos sofrimento e desilusão. Fingindo que nossos filhos não estão com as drogas batendo em suas portas de casa e da escola, jovens alcoólatras desiludidos da vida com quinze anos de idade, nos postos de gasolina, que quem chega com dinheiro sujo em casa está criando filhos bandidos, que as lavanderias e os fabricantes de laranja tomam conta do país.

Será que ninguém se toca que a desgraça é tanta que nossos filhos estão encantados com a violência, cantando “Tropa de elite, pega um pega geral...”, presos em suas gaiolas modernas, como cantávamos, feito passarinhos inocentes, as músicas infantis de outros tempos? Que o medo é tamanho que as crianças são as que mais gostam das denúncias verdadeiras e terríveis do cineasta José Padilha? Que o tempo do terror é o nosso tempo? Que estamos vivendo o caos? Que o Blade Runner, com sua visão sombria e premonitória, é agora, com tecnologia avançada e crianças morrendo de inanição?

Homens e mulheres de bom coração temos que mudar o mundo. Inconformados, lutar contra o ladrão pé-de-chinelo e o figurão de paletó e gravata. Lutar por uma vida melhor para todos. Por cidadania e honra. Por beleza e harmonia. Por amor e alegria. Acho que não podemos aceitar que a vida é assim mesmo e pronto. Não chegou a hora de mudar o rumo da história? A omissão é um crime imperdoável. Será que viemos ao mundo para viver feito bichos? Nós podemos mudar o mundo, cada um com sua gota, feito o beija-flor apagando o incêndio na floresta. Com poesia e o coração sincero. E coragem.

dori carvalho
Enviado por dori carvalho em 04/05/2010
Reeditado em 14/05/2010
Código do texto: T2236564
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