Curió

Eu olhava do alto os telhados com suas antenas espinhas de peixe que captavam chuviscos e ruídos. Captavam o tempo em que eu vivia.

Não havia cores nas telas das tvs, não havia cores como hoje se diz: berinjela, mostarda, ferrugem. Mas havia as cores do arco-íris, paralelepípedos nas ruas e o horizonte a se perder de vista. Havia arranjos de flores sobre os móveis, o cheiro do refogado ao meio-dia, o toque bom da campainha, o canto do Curió que me fez companhia.

Meu mundo era o que eu olhava do alto, no amanhecer temprano, no entardecer de cigarras invisíveis, no anoitecer da luz se apagando. Meu mundo era simples como a água que eu bebia, como a comida na hora certa, como a roupa limpa e perfumada que me cobria.

Eu ouvia as vozes conhecidas pela casa enquanto o sono não vinha.

Eu ouvia as mesmas vozes pela casa no despertar do dia.

O bom era o bem-viver que me acolhia. Eu cantava de alegria.

O mundo lá fora eu não conhecia, mas eu olhava prá ele sabendo que um dia ele me alcançaria. Então o meu canto teria que ser mais soprano, as minhas asas bateriam mais rápido, eu teria um corpo coração entranhas estranhamente feliz. Eu não saberia aonde ir, mas eu iria por onde o vento levasse meu canto, mesmo que a chuva viesse de frente e molhasse minha face espantada, mesmo que o sol ardesse em mim deixando sua marca, eu iria porque do mundo não há como fugir, não há como evitar esse abraço, às vezes tão forte que pode doer até nos ossos.

Essa era a sina: um dia a portinhola se abriria num descuido ou não, num ato inconsciente ou não, mas generoso. Então a oferta da livre escolha...

Hoje me pergunto: por onde anda o curió que um dia cantou na gaiola do meu bem-viver? Por onde anda a gaiola? Por onde anda o meu bem-viver?...