O ENTERRO DA VOVÓ

Ainda não havia dado sete horas daquela manhã de sol em Olinda e eu já estava de pé. Marcamos que iríamos para a praia com a turma de pintores para uma partida de futebol, dentro do roteiro de festa da empresa de tintas para residências que eu trabalhava.

O salão do hotel estava vazio. Para passar o tempo, Veloso e eu colocamos as bolas na mesa novinha de sinuca para uma partida.

Notei a presença dele quase escondido pela cortina, lá no fundo do salão.

Tive a intenção de chamá-lo quando o Veloso, falando baixinho, sem olhar para mim ou para ele disse: É o Carlos, ele é assim mesmo, sempre sozinho depois do que aconteceu com ele.

Fiquei curioso e tive que esperar chegar à noite para o Veloso me contar.

Tudo começou em Curitiba, onde moram os outros parentes dele. Lá residia a Dona Eulália, avó materna do Carlos.

É uma senhora bastante idosa que cismou que queria porque queria de toda maneira visitar os seus netos e bisnetos em Pernambuco.

De nada adiantou os argumentos de Zizinha, a filha mais velha, solteirona, que era muito mais do que filha. Cuidava da mãe com os cuidados de uma enfermeira.

Enfermeira só não! Copeira, cozinheira, advogada, confidente, pai e mãe, sacerdote e coroinha.

A facção da família no norte, emocionada com a lembrança da vó quase centenária, se colocou pronta para recebê-la em Olinda.

Zizinha com todo o cuidado, expunha para a mãe, uma série de problemas que ela ia encontrar. E perguntava tentando convencer: “quem vai lhe dar os remédios na hora certa, e a ajuda no banho, a comida especial e muitas outras coisas que ela fazia e que a mãe não teria no outro estado?”.

Não quis comentar sobre trabalhão que tinha porque para ela, cuidar da mãe não era trabalho, era obrigação.

E como Zizinha fazia parte do coro da Igreja e naquele período haveria apresentação quase diária nas festas da paróquia, ela não poderia acompanhar a mãe.

Dona Eulália, como não conseguiu convencer a filha, usou outra técnica. Parou de comer, de rezar e não queria nem mais se levantar.

Para tomar banho era um show. Largava o corpo e vinha arrastada para o banheiro. Cada vez que isto acontecia, Zizinha quase morria e chorava copiosamente acreditando ter agredido a sua mãe.

Estes sinais para quem tem 94 anos de idade podem se tornar fatais. E dona Eulália foi silenciando, emagrecendo e não falava com mais ninguém.

Então, deliberaram todos os cinco filhos que ela iria visitar os bisnetos em Olinda.

Dona Eulália remoçou. A viagem de avião (a primeira em sua vida foi sensacional). A alegria de Dona Eulália contagiou o vôo todo.

Ela falava com todos, dava receitas espalhando alegria. Quis saber como funcionava o banheiro do avião. A aeromoça acompanhou Dona Eulália que apertava todos os botões, rindo com os efeitos alcançados e imaginava o felizardo que receberia na cabeça a descarga do sanitário do avião.

Dava conselhos às aeromoças sempre acompanhados de receitas sobre como melhorar as comidas servidas. Quiz descer em São Paulo para visitar o tumulo de uma tia.

Pediu mingau de aveia. Não tendo, servia o de Araruta. Em síntese, deu mais trabalho do que um bando de crianças juntos.

O avião desligou as turbinas no aeroporto de Recife. E quem disse que dona Eulália queria descer. Foi outra campanha com promessas, houve quem ofereceu revista, pacote de biscoito, arco para o cabelo e nada de D. Eulália desagarrar da poltrona.

Alguém teve a idéia de chamar pelo microfone do aeroporto os netos e bisnetos da alegre senhora. Só assim, quando foi reapresentada ao Carlos seu neto, é que resolveu sair.

Sob os aplausos da tripulação e de todos os passageiros daquele vôo, Eulália, sorridente, finalmente pisou no solo pernambucano.

Os dias foram passando com Dona Eulália fazendo a maior farra. Comia caranguejada, escondidinho, baião de dois, peixe e camarão frito, bobó de camarão, xinxim de galinha, cocada, baba de moça, arroz doce, quebra queixo e um montão de coisas mais, menos a comida orientada por Zizinha.

Na realidade, dona Eulália espertamente jogou fora a lista de recomendações.

E foi a maior alegria no bairro. Dona Eulália sabia receitas para tirar verrugas, curar hemorróidas, acabar com tosse comprida, gripe e resfriado, e até de conter mulher atentada.

Benzia menino com boqueira, espinhela caída e soluço e ainda por cima ensinava corte e costura pelo método centesimal.

E a boa velinha aproveitando a sua vida como nunca. Faltavam dois dias para dona Eulália regressar quando aconteceu.

Ela foi dormir às 22 horas e nunca mais acordou. Morreu sorrindo e provavelmente nem sabe ainda que morreu.

Não preciso nem contar o desespero das duas famílias. O certo é que acertaram o retorno de D. Eulália par ser enterrada em Curitiba, no jazigo da família.

Carlos, o neto mais velho, ficou o responsável pelo traslado do corpo. A burocracia era enorme. Quando recebeu o orçamento do caixão lacrado, do embalsamento e do preço da passagem, quase desmaiou. Teriam que vender a casa e ainda precisariam arranjar dinheiro emprestado.

Enquanto o corpo de dona Eulália esperava no frio do necrotério, os parentes do norte e do sul em reunião por telefone decidiram que Carlos deveria pegar o corpo de dona Eulália e traze-la o mais rápido possível na sua caravan, o único carro da família.

A liberação do corpo foi fácil. Agora era tratar da preservação dele para agüentar a viagem. Carlos comprou cinco litros de formol na farmácia, duas seringas com agulha.

Com o cuidado que o momento exigia, estenderam o corpo nú de Dona Eulália na mesa da sala.

Pedindo desculpas à avó e em seguida permissão e o processo de embalsamento começou. E toma seringada de formol na barriga, nas faces, nas pernas, braços, bunda, costas, pescoço, cabeça, em todo o corpo.

Finalmente, Carlos arranjou emprestado com o vizinho, duas rolhas de Espumantes e lacrou o anus e a vagina da velinha, tudo com muito respeito.

Cheirando a formol, devidamente embalsamada embrulharam o corpo pequeno de D. Eulália com dois sacos de lixo de 40 litros, daquele preto, um entrando pela cabeça e o outro pelos pés.

Para o acabamento, uma lona. O corpo encurvado da velinha coube certinho no porta malas, sobrando espaço para o estepe, macaco, triângulo, chave de roda e a mala com a muda de roupa do Carlos.

Na madrugada de uma terça feira, o neto mais velho partiu de Recife com a Caravan revisada, levando sua preciosa carga.

Atravessou Sergipe, Bahia e Minas Gerais. O velho Chevrolet andou engasgando e atrasou um pouco a viagem.

Madrugada de quinta feira quando chegou em São Paulo. Ele não agüentava mais dirigir. Era mais seguro parar para dormir um pouco.

O Hotel perto da Rodoviária de São Paulo tinha o preço que cabia no seu orçamento. Precisava mostrar para a família do sul que sabia a responsabilidade que lhe deram e não iria esbanjar dinheiro.

Deixou o carro trancado bem em frente a portaria do hotel. Para garantia extra, passou a corrente pelo volante até dar a volta e acabou por travar o pedal da embreagem. A corrente bem esticada imobilizava o carro. Por fim, prendeu os elos com os dois cadeados.

Em estado de bagaço, Carlos pregado, foi dormir.

Acordou assustado às nove horas da manhã. Levantou rapidamente, tomou um banho, desceu na copa quis somente um cafezinho, pagou a diária do hotel, pediu a nota para prestar contas e ...

Cadê a Caravan?

“Mas eu deixei aqui na frente do hotel, não é possível, alguém deve ter visto quem pegou o meu carro”. Gritava ele desiludido.

O hotel se eximia de culpa. Ele poderia ter deixado o carro no estacionamento em frente. Mas quis economizar deu nisto, alertou o porteiro do hotel.

Chamaram a polícia. Foi feito um Boletim de Ocorrência e Carlos foi orientado a esperar pelo menos dois dias na cidade. Sua preocupação maior era quando achassem o carro o que diria a policia do corpo?

Estava ferrado. Ficou cinco dias. Nada do carro.

Resultado. As duas famílias nunca mais se falaram. Dizem as más línguas que Zizinha, a filha que tomava conta da D. Eulália, recebe até hoje a aposentadoria da mãe. E com isto já arranjou dois namorados.

Carlos sem esperanças de reaver ao menos o carro, esconjurava a pobre velinha que veio para visitar e só trouxe problemas.

Do ladrão, ninguém sabe a sua reação quando desembrulhou o pacote do porta mala e o destino que deu a múmia da Dona Eulália.