Eu, Maratonista

Eu, maratonista

Frequentemente me pego comparando nossas vidas à corrida de São Silvestre.

E me vejo no meio da multidão de atletas. E é uma multidão multirracial, multicolorida, multisocial e uma infinidade de multis. Tem pra todo gosto. E essa corrida sem fim nos prepara à todo momento, muitas surpresas. Boas ou não. Gratificantes ou desafiadoras

Vejo atletas me ultrapassando numa velocidade frenética, ao mesmo tempo em que eu ultrapasso outros tantos. E ao meu lado, sempre vejo corredores na mesma velocidade que eu. Dias após dias. Anos após anos. Meus melhores amigos, meus familiares, meus mestres estão nesse grupo que resiste ao tempo. Algumas vezes somos forçados a uma parada para despedir de alguém que fica no meio do caminho. Cumpriram a sua missão.

Nas margens da pista, sempre vejo atletas ficando para traz. Fizeram a sua parte, ou desistiram ou foram excluídos. Sei que em algum dia eu também deixarei a corrida, mas não quero pensar nisso agora. Meu empenho atual é fazer uma corrida limpa e justa comigo e com os atletas que estão próximos. Tem pessoas valorosas ao meu lado, não as quero deixar caminhar sozinhas nem decepcioná-las.

Às vezes me deparo com um atleta muito cansado, quase moribundo. Paro e lhe sirvo um copo de água. Vejo que fez bem, pois ele se levantou e continuou sua corrida. Outros até se juntam ao nosso grupo. Por várias vezes, eu também já caí e fui socorrido por atletas anônimos, me livrando ser pisoteado, o que certamente teria acontecido, se esses amigos não me tivessem socorrido.

Também vejo multidões de crianças entrando na corrida. São bons nisso. Uns rebeldes, outros irreverentes, outros ainda querendo mudar a trajetória da corrida, sem sucesso. Com o passar do tempo eles aceitam as demarcações e regras e a corrida continua.

Vejo pessoas caminhando com dificuldade, porém com uma determinação incrível. Haja garra! São verdadeiros exemplos de coragem, de vontade de continuar. São invejáveis.

Vejo grupos de médicos, enfermeiros, conselheiros, massagistas, todos voluntários importantíssimos, a nos ajudar nos momentos de cansaço, de agonia, de fadiga profunda. São verdadeiros anjos a dedicar suas corridas a ajudar os outros atletas, quase sempre sem ganhar nada por isso. E são incrivelmente felizes por isso, mesmo sabendo que em breve dependerão de ajuda também.

Também vejo atletas desonestos, cometendo faltas para passar à frente, mesmo que para isso tenha que tirar da corrida alguns atletas bastante promissores.

Me revolto, tento ser o reformador do mundo, mas depois vejo que não consigo grandes coisas, a demanda é infinitamente maior que a minha capacidade. Muitas vezes me martirizo com isso, mas depois sinto que ajudando ao meu próprio grupo a continuar, já terei cumprido meu papel.

Frequentemente vejo famílias inteiras caminhando juntas, os mais fortes ajudando os mais fracos. Chegar na frente não tem a menor importância para eles. O objetivo maior é a caminhada em grupo. E isso, com certeza, faz com que alguns carregue outros nos braços, na maca, na cadeira de rodas. E curiosamente, isso não representa um peso pra ninguém. Eles valorizam mais a caminhada, o fato de estarem juntos, se ajudando, se protegendo. E parecem ser muito felizes por essa escolha.

Fico feliz com isso, pois eu também optei por caminhar em grupo. Me pareceu mais produtivo, mais feliz, mais seguro. E nesse caminhar, muitas vezes já ajudei a carregar amigos em padiolas, muitas vezes já fui conduzido também, quando eu não estava bem, estava com bolhas nos pés ou câimbra nas pernas. Alguns desses momentos, eu estava semi desfalecido, tamanha era a fadiga. Era absolutamente dependente e pude contar com meus amigos. Eles não sabem o quão são importantes para mim.

Muitas vezes vejo algum amigo de fé se debandando, se juntando a outros grupos. Igualmente vejo outras pessoas deixando os seus e vindo se juntar a nós.

Também vejo muitos atletas nômades, anônimos e solitários, caminhando em suas próprias dores e angústias, sem saber conseguir definir seu próprio ritmo, sem perspectivas, excluídos. Vejo loucos tentando atear fogo no mundo no intuído de acabar com a maratona. Claro que não conseguem.

Então percebo que tudo está no seu devido lugar. Essa é uma corrida sem fim. A todo momento tem atletas entrando, a todo momento tem atleta deixando a corrida. E isso é pacífico, é natural, é a regra da maratona. Ontem, hoje e amanhã. Sempre será assim.

Sempre teremos de nos defender dos maus atletas, sempre temos de ajudar os nossos queridos. Muitas vezes teremos de pedir ajuda. Muitas vezes vamos chorar a falta de um que ficou, mas também sempre teremos comemorações por novas adesões.

Um dia não estarei mais na maratona. Então, decidi que quero deixar boas lembranças. Quero ser motivo de bons comentários, quero ser orgulho daqueles que se decidiram meus amigos.

Apenas não sei exatamente como fazer isso, embora tenha tentado todos os dias, percebo que nem sempre consigo. Daí a necessidade de aprender, de treinar, de me exercitar todos os dias. Daí a minha necessidade de contar com meus amigos para me ensinar, me alertar, me dar dicas preciosas, às vezes me dar um puxão de orelha quando eu pisar na bola.

Só assim, com a ajuda e paciência de cada um, conseguirei deixar a minha marca. Só assim conseguirei deixar saudade quando não estiver mais na maratona de nossas vidas.

Faria Costa
Enviado por Faria Costa em 13/05/2010
Reeditado em 24/09/2019
Código do texto: T2254819
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