CATACUMBAS

Aqui embaixo é muito frio, frio mesmo, gelado para falar a verdade. Às vezes me esforço para rever em memória as boas lembranças do meu passado, já faz tanto tempo... É impossível ter uma solidão maior que esta. Eu tenho muitos parentes, no entanto não vejo quem está vivo e nem os mortos, pois eu estou enterrado e preso com a minha alma neste pequeno espaço. Alguns deles com certeza por aqui se encontram e outros devem estar em um cemitério qualquer da cidade. A merda é que eu não tenho acesso ao fichário dessa necrópole, senão eu saberia quantos vieram pra cá por merecimento ou não e quantos faltam, sem dizer os que estão no bico do corvo. Sinto falta de um livro pra ler. Em vida eu fui muito estúpido de não ter feito um pedido para que colocassem dentro do meu caixão uns exemplares dos meus escritores prediletos, um Fernando Pessoa, Carlos Drummond, Guimarães Rosa, Charles Bukovski, Euclides da Cunha entre tantos outros... Sinto tanto ter me esquecido, pois se estivessem aqui e enquanto não apodrecessem como a minha carne que se desmanchou, ou melhor foi comida pelos milhares de vermes eu poderia devorá-los todos os dias, poderia até repetí-los muitas vezes, porque aqui é a eternidade e tenho tempo de sobra.

E depois que sumissem eu poderia lê-los só no pensamento, de tanto os ler eu os teria decorado, faria uma nova introdução, um meio diferente, ou mudaria um final só pra variar. Eu sempre gostei de escrever poesias, tinha até algumas rabiscadas. Eu poderia escrever novamente, pois ainda me articulo muito bem, mas, não tem papel e nem caneta neste caralho de buraco aqui. Eu já me estressei tanto, com tantas restrições que nem gosto de comentar, mas como eu só posso soltar o verbo, é o que me contenta. Através da minha alma eu posso ver, ouvir, cheirar, sentir e falar, até andar se bobear eu ando, mas tudo na forma de assombração. De tanto estalar os meus dedos, eles já ficaram todos tortos e me deram artrite. Sem contar que já quebrei uns três deles e nem posso arriscar mais pois estou com osteoporose aguda também. Assoviar não posso, não tenho língua. Eu queria poder dançar, mas, aqui nessa porra não tem música, eu nem tenho mais orelhas para escutar mesmo, não posso ficar em pé devido ao espaço... Aí então eu improviso uns passos de break deitado mesmo e assim nos movimentos já me livro um pouco da coceira desses insetos. Tomar banho também não posso porque lavaria a alma e eu nem fui julgado ainda. Nem uma miserável lixa de unha eu tenho para fazer a manicure, elas estão tão compridas que parecem as mãos de um bicho preguiça. Cruz credo, as minhas unhas dos pés então nem queira ver, estão iguais caramujos de tão enroladas. Pentear os cabelos nem pensar, soltaram-se todos os fios... Já peidei tanto aqui dentro que me acostumei com o cheirinho do gás metano. No começo foi pior, pois algumas horas antes de morrer enforcado eu me lembro que eu fiz uma boa refeição, comi feijão, arroz, bife ao ponto, batata frita, repolho refogado (dá um pum desgraçado de fedido) e uma saladinha de tomate com bastante azeite de oliva (adoro)... Então, umas três horas logo depois de eu ser enterrado, (a comida tinha fermentado e curtido bastante), soltei um grande peido que estava acumulado no meu intestino, que foi de levantar a tampa do jazigo. Era horroroso de catinguento, fedeu como o cheiro de ovo podre.

Tentei tampar o nariz com os véuzinhos da mortalha do rosto e com retalhos do forro do caixão, mas, caí na gargalhada pela situação de eu não poder correr dali e acabei cheirando tudo. Alguns meses depois o cheiro do peido passou a ser um só, de carne podre (a minha), hoje em dia ele tem catinga de lama e limo (mais tolerável).

Praticamente fico estático quase todas as horas do dia, como que obedecendo aquela famosa frase “Que este ser querido e iluminado descanse em paz”, em paz eu estou, o que me falta é comodidade, sinto falta de um cobertor de lã, de um café quentinho com leite também, mesmo que só pelo prazer de sentí-lo escorrer pelos meus ossos da boca e pescoço, pois não posso engolir, não tenho mais paladar, não tenho mais estômago para segurar liquido ou sólido. Muitas vezes eu me desmancho como um quebra-cabeça e me monto novamente trocando os ossos de lugar só pra me divertir um pouco, já fiquei com o fêmur preso na boca, queria ficar parecido com um elefante ou um tamanduá bandeira sei lá.

Coloquei o meu torso virado pra cima, botei um dos pés no nariz, encolhi pernas e braços e imitei um tatu, ficou bonitinho... Aliás, falando em tatu, já faz muitos anos que apareceram dois por aqui. Um tatu fez uma bagunça danada, escavou e jogou terra em cima de mim (como se eu precisasse), eu tentei falar com ele, mas, foi em vão, não sei se fui ignorado por estar morto, talvez ele não estivesse a fim de papo ou ainda não tivesse entendido o meu idioma monossilábico (eu só falo uma sílaba repetidas vezes com o bater dos dentes, é - téc, téc, téc, téc, téc), vai ver que foi isso.

O outro tatu que apareceu na mesma semana, parecia cansado e dormiu do meu ladinho uma tarde toda até o anoitecer e depois foi embora, e olha que eu ainda fiz um carinho de amizade no seu casco, mas, o desgraçado deixou uns cinco carrapatos aqui embaixo que viviam grudados em mim, na verdade nem me importei muito, pois eu nem tenho sangue pra esse bicho me chupar. Apesar de tudo eu fiquei grato a eles por terem me deixado por um pequeno período de tempo um bom presente. Através daquele buraco eu via a luz do dia e o reflexo do luar, ouvia os barulhos lá fora e o cantar dos pássaros. A minha maior diversão porém, foi assustar os coveiros e uns funcionários deste cemitério. Um deles, foi quando o danado acabava de tampar um defunto, já era quase noitinha... Quando eu soltei o meu uivo de lamento arrrepiante eu ouvi! - MeuJesusamado! SAÍÍÍÍÍ PRA LÁÁÁÁÁÁ DIIIIAAAABBOOOOO! Ele jogou a pá e saiu correndo tão rápido que as botas saíram dos seu pés, gritando apavorado (cagou-se na calça eu acho). O outro foi um vigia que quando passava bem pertinho da minha cova (assoviando para disfarçar o medo), eu gritei forte um HHuuuuuUUUUUUUUU!!!. Ele disse: Eu Creio Em Deus Paiiiii AAAíííííííííííi XôôôÔÔÔôôô Alma Penada!!! O infeliz desembestou morro abaixo que foi só um risco no barulho do sapatão. Eu fiquei de queixo duro de tanto rir.

Eu poderia escapar pelo buraco que o primeiro tatu deixou e o outro saiu, mas, eu estou no purgatório e não sei se vou pro céu ou pro inferno (bem que aqui já é um inferno... Frio... Mas é). A lei dos espíritos não nos deixa sair mesmo que tentarmos, eles determinam isso. Eu já tentei mais de uma vez junto com a minha alma, mas os meus ossos travaram e eu não consegui. Eu tenho medo, posso ser fulminado por um deles e morrer. Ah! Veja só como eu esqueço, pois eu já estou morto. Acho que é a idade, estou ficando um esqueleto caduco. Naquela mesma época começou uma temporada de chuvas e a minha cova estava sendo invadida pela água. Então eu tampei bem o buraco e aí nunca mais vi bicho nenhum por aqui, com exceção das minhocas, dos vermes e de outros insetos que eu não conheço e que sempre acham uma gosminha na minha carcaça para eles roerem ou lamberem. Acabou-se a minha diversão de assombração também.

Não tenho mais amizades com ninguém. É foda, vivo muito só. Falando em foda, eu sonho com mulheres bonitas e às vezes eu sinto uma vontade de me masturbar, mas que merda, nem pinguelo eu tenho mais, só fico na vontade... Não tenho nem mais pentelhos agarrados pra lembrar, caíram todos, esses dias eu fiz um chumaçinho dos que eu encontrei pelo chão, mas acho que eu misturei com os pentelhos do meu ex-cú e não combinavam no tamanho, mesmo assim os botei por um instante no osso do púbis só pra ver como eram...

Enterraram mais pessoas aqui em volta da minha catacumba, não sei quem são eles, mas uns dois ou três deles devem ser gordos, pois ainda estão apodrecendo, sinto o cheiro minando da terra, vem de todos os lados. O gás metano já está inchando o espaço desse lote aqui. Em um dos enterros que eu acredito ter sido muito grande, pois eu escutei muito barulho de passadas, fiquei puto da caveira (cara) porque uns filhos das putas pinguços, no apuro mijaram numa greta do meu jazigo, a urina vazou aqui pra dentro e fedeu muito, tinha cheiro de cerveja e cachaça, provavelmente efeito do velório regado a álcool. Roguei uma praga de morte neles.

O meu dia mais feliz é nos finados, 02 de novembro eu me comemoro como se fosse um outro aniversário, aliás, tenho quatro datas comemorativas de mim mesmo. O dia do meu nascimento, o dia do meu aniversário (que não aparece ninguém, muito menos ganho presentes), o dia da minha morte e o dia das almas (mortos). Aparece muita gente por aqui apesar de que a maioria eu reconheço do ano passado pela voz, só há exceção com os parentes dos novos mortos vizinhos. Todo mundo fala, todo mundo chora aqui e ali, sinto a presença de todos os meus parentes que eu conheci em vida e outros que não conheço, porque vieram depois como as minhas noras, genros e os meus netos.

Sinto o cheiro da fumaça dos cigarros pelas frestas da terra e me dá uma vontade louca de fumar, eu até aceitaria um cigarro deles, mas, se eu fosse acender um isqueiro aqui embaixo onde está infestado de gás metano, acho que poderia matar alguém, pois eu correria o risco de explodir o cemitério inteiro com a chama... Apesar dessa vida de morte, eu vivo com um sorriso direto no rosto, sempre rindo. Eu apenas sou um esqueleto que com a prisão ainda não se conformou. Quem disse que com a morte a gente se liberta?

Eduardo Eugênio Batista.

Setedados
Enviado por Setedados em 13/05/2010
Reeditado em 26/05/2011
Código do texto: T2255185
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