Lúcida Noite de Verão

Eram nove horas da noite. Na noite anterior, devido à forte chuva de verão que assolou os morros cariocas – como é de praxe -, Humberto havia se dado conta da total impossibilidade de locomoção em dias como este. O trânsito ficava caótico, lembrando os engarrafamentos quilométricos da cidade de São Paulo. O que sobrava nas ruas nesta noite era a enorme quantidade de lixo, muito embora a temperatura e o clima já estivessem mais amenos.

Humberto morava no Jardim Botânico, zona sul do Rio de Janeiro, e já contava com seus setenta e poucos anos. Havia perdido a conta de quantas tempestades já presenciara na sua cidade de coração. Todos os anos, à época de verão, o sol que infernizava a vida do cidadão carioca se aliava aos tiros nervosos da natureza, causando o estrago de sempre.

Quando criança, seu pai, que era um escritor de renome, decidira se mudar com a família para a cidade de Barcelona, e lá moraram por dois anos. Humberto já era quase um adolescente, e ao saber do seu destino ficou bem empolgado, principalmente pela facilidade que já tinha em suas aulas particulares de espanhol, inicialmente ordenada pela sua mãe, e posteriormente acolhida com grande prazer por ele.

Tinha grande facilidade em relacionar-se, e em Barcelona, passado o período de adaptação, Humberto conheceu várias pessoas de seu interesse, o que mais lhe enriquecia, dada a diferença de culturas.

Lembrava ele nesta noite solitária, dos encantos de Barcelona, e do seu primeiro romance, nesta cidade, com uma menina. Seu nome era Antonia, uma italianinha que estudava com Humberto na sétima série da sua escola, voltada predominantemente a estrangeiros residentes.

Antonia tinha cabelos lisos castanhos, e o perfume de seu charme exalava de cada passo que dava, o que encantava o jovem brasileiro, sendo que aos poucos ela ia conquistando o lugar de preferência em seu coração.

Começaram como colegas de classe, aprofundaram sua amizade no grupo de estudos da classe, e iam se tornando íntimos aos poucos, muito pelo fato de serem dois estrangeiros residentes na Espanha.

Antonia não guardava segredo entre as amigas de que Humberto, carismático que era entre os alunos e com a articulação que apresentava no seu comportamento, tinha despertado o seu interesse, para além da amizade.

Mas ele era muito imaturo ainda pra poder expressar que, na verdade, sentia o mesmo por Antonia, e que sentia um desejo cada vez maior em relacionar-se com ela. Seria então seu primeiro beijo, tardio, numa menina.

Não tardou Humberto em vencer a sua própria barreira e declarar-se a Antonia, assim como em começarem a trocar carícias em encontros secretos, após as aulas.

Tudo isso era uma gostosa lembrança de um senhor de idade, mas levava-o a sentir uma certa melancolia ao reconhecer que Antonia, mãe de seus dois filhos, Giovane e Júlio, partiu antes do tempo marcado, e deixou uma forte presença de um exemplo de pessoa, de mãe, de esposa.

Aquele casal, passados dez anos do retorno de Humberto ao Brasil, voltou a se encontrar na Espanha, numa festa de confraternização de ex-alunos, quando de fato começaram um sério relacionamento.

À época do encontro, ainda amigos apenas, foi ela convidada a passar uma temporada no Rio de Janeiro em sua casa, quando Humberto já morava sozinho, muito embora tivesse seus parcos trinta anos de idade.

Da convivência em comum, vieram o relacionamento, o namoro, o casamento e os filhos. Antonia já não mais tinha intenção de retornar à Roma, sua cidade natal, e adaptava-se aos poucos à sua nova condição de ‘brasiliana’. Contava com um forte sotaque, mas apaixonara-se pelas terras brasileiras, em especial pelo Rio de Janeiro.

Não sabia o motivo pelo qual deveria tentar esquecer, e com isto sofrer, por lembrar-se da sua autêntica cara metade, que lhe motivou e deu razão à sua inicialmente tortuosa existência.

Isto porque Humberto, muito embora muito bem nascido, no seio de uma família próspera e bem amparada, não teve a oportunidade de se perder.

Reconhecia agora, aos setenta e três anos de idade, que sempre esteve bem albergado no convívio familiar, isto é, teve uma família saudável e numerosa, com tios, tias, avós, mas que curiosamente isto não lhe possibilitou, por si só, o seu pleno desenvolvimento enquanto ser humano consciente de si.

Lembrava-se de Miguel, seu grande amigo dos tempos de faculdade, no Rio de Janeiro, que guardava um enorme espaço em branco. Miguel não teve nunca o apoio familiar, já que mal tivera um pai presente e uma mãe, tendo a intimidade entre os dois revelado cada vez mais o quanto Miguel careceu de uma boa educação.

Mas ao mesmo tempo, reconhecia que esta limitação de Miguel, no correr dos anos, o tornava cada vez mais seguro de si mesmo.

Miguel, seu grande amigo, mais do que um vencedor na seara profissional, mais do que um pai de família, tornara-se um vitorioso independentemente dos seus acertos e pontos ganhos.

Foi após seus anos de faculdade que Miguel foi recapitulando-se, entrando numa nova fase em sua vida: não mais importunava-lhe as marcas da vida.

Já seu amigo contou sempre com o apoio familiar e financeiro, mas em momento algum lhe foi revelado aquilo que invejava no seu colega de turma: sua firme convicção perante os fatos da vida.

Humberto teve Antonia, teve Giovane e Júlio, teve segurança e uma vida estável. Seus pais, sempre atentos e amáveis, lhe deram aquilo que toda criança merece, mas parece que Humberto ainda carecia de algo que agora, aos setenta e três anos de idade, lhe dava ainda a impressão de que o quebra-cabeça ainda não se encaixava perfeitamente.

Já Miguel tinha se dado conta disso também, só que aos trinta anos, e toda uma vida havia transcorrido sem que Humberto houvesse realizado este simples fato: o reconhecimento de seu papel enquanto indivíduo inserido no dia-a-dia cotidiano.

Cozinhando a massa italiana, naquela noite solitária, Humberto, já um senhor, à medida que ia misturando o molho de tomate à massa cozida, ia se recolhendo ao seu íntimo, como que num flash de consciência que nunca antes tinha lhe ocorrido, e se deu conta daquilo que serviu de base à existência de outros, como Miguel e sua querida Antônia.

“Tudo foi muito fácil pra mim”, recapitulava num gesto de auto-condenação.

De fato, Humberto não soube aproveitar as circunstâncias. Ou melhor, soube, mas também não havia lhe dado nada além de uma vida não questionada, não atestada, não convicta.

Poderia, pensava, ter se dado conta deste fato ao se casar, e talvez isto lhe trouxesse um maior comprometimento enquanto pai, profissional e ser humano.

Não foi um mal pai, mal profissional, ou uma má pessoa. Mas também não fora uma pessoa absolutamente consciente, um profissional comprometido consigo próprio. Reconhecia que ao largo de seus dias, sempre ‘foi vivendo’, foi tomando as agruras e deleites do cotidiano sem que procurasse deixar uma marca, sua assinatura neste documento oficial que foi sua vida.

Viu claramente que não era que tinha que modificar suas relações ou seu comportamento, mas sim que poderia mexer com sua estrutura, esta deixada de lado até aqui.

A imagem do comprometimento de Miguel, a tomada de consciência que lhe modificou o comportamento após seus dias na faculdade, e o semblante de sua face que estampava suas ações a partir de então, servia como base agora a ele.

Parecia que agora, mais do que nunca, enxergava claramente a finalidade desmotivada que impulsionou a tantos ao longo das suas vidas e agora lhe atingia.

Humberto foi aos poucos, mesmo com sua idade avançada, auferindo os frutos desta tomada de consciência, muito embora não havia mais tempo de relatar este fato à sua esposa, falecida há dez anos.

A terceira idade, de fato, se transformava na melhor idade, premiando a ele com a serenidade e sabedoria dignas deste velho senhor.

17.05.2010

Eduardo Piereck
Enviado por Eduardo Piereck em 18/05/2010
Código do texto: T2264814
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