Ainda existe vida

Jung se baseou em coisa mais transcendente para traçar sua teoria do inconsciente coletivo, mas, se fosse menos sisudo, poderia desenvolvê-la observando as brincadeiras de crianças. Diferentes culturas têm jogos diferentes, mas, na essência, são muito parecidos e outros, iguais, mesmo que não importados. Parece que existe um manual no ar, para ser respirado, absorvido e aplicado pelas crianças do mundo. Ou são os anjos da guarda que os ensinam.

Na minha infância havia algo de intrigante. Ao menos nunca consegui entender o mecanismo que desencadeava os acontecimentos. Pode ser que fosse impressão, mas, num dia não havia um pião (aqueles de jogar, não o peão de se agarrar em touro bravo) na escola e, no dia seguinte, em cada esquina havia grupos jogando e andar no pátio da escola sem ser atingido se transformava num acontecimento. Não era algo gradativo, parecia um planejamento muito bem feito. Como nunca ouvi uma pessoa combinar coisa alguma e como não havia um calendário oficial das estações de cada brincadeira (dizíamos que era “tempo” disso ou daquilo), o mistério continua.

Assim se sucediam os “tempos” de bolinha de gude, que chamávamos de pecas, “tempo” esse às vezes consorciado com o de pião, de pandorgas e assim por diante. Fixos, apenas o de pegar borboletas, que vendíamos, e o de pandorgas, por causa do vento.

Como conseguíamos ser felizes naquela época? Éramos uns babacas, possivelmente. Onde já se viu: aparelho de TV não havia mais de cinco na cidade inteira, assim mesmo, só para ver chuvisco – verdade, só existia em preto e branco - , computador só de válvulas, enormes, em filmes americanos e brinquedo com pilha, que mais falhava do que funcionava, era o supra-sumo da tecnologia para crianças, só para ricos, claro.

Um atualizado estudo aponta o uso do smart phone para surfar na Internet, ver vídeos e ouvir música como comportamento típico de americanos dos 8 aos 18 anos de idade. Depoimento de um jovem de 15 anos: “Eu sinto que meus dias sem ele (o smart phone) seriam uma chatice”.

Talvez, se tivesse brincado de pião, peca e pandorga, não seriam. Ainda existe vida além da tecnologia.