Às tardes eu ouvia o Caqui

Ao longo das tardes, eu ficava em casa. E as tardes eram longas na rua Albuquerque Maranhão. Era demasiado longo o tempo para quem, na infância, na tinha amiguinhas para brincar, para pintar alguma coisa, para reinventar uma sala de aula com lousa e um pouco de giz e as bonecas sentadas à frente como alunas imaginárias. Existia uma vizinha, a Denise, que era da minha idade, mas eu não conseguia me sentir à vontade com ela em nenhum momento. Eu a via como uma pessoa de má índole. Parecia que tinha uma boa reserva de um veneno que não se esgotava. E então eu preferia ficar em casa. Eu gostava de pensar, imaginar, fazer planos. Imaginava a minha vida adulta em Santa Catarina, poder viajar, caminhar conforme o vento e os meus desejos. Que paixão inexplicável e incontida! Quantas vezes, no início das noites eu ficava à janela, com os cotovelos fixos no parapeito olhando as luzes da cidade, em direção ao Ipiranga e pensando : “quando eu crescer, vou morar em Santa Catarina!”

Mas as tardes eram longas, e eu sentia que alguma coisa eu haveria de construir na vida, com próprias mãos, algum conhecimento, e sonhos e poesia... Eu pensava em, um dia, poder ensinar alguma coisa a alguém. E então eu pensava. Eu sonhava e valorizava as tantas falas que iam acontecendo ao longo dos dias e ia filtrando o que seria bom para a minha longa estrada.

Eu olhava para a minha avó. Eu sabia que ela sabia. E a minha avó tinha um rádio na sua cabeceira. No criado-mudo, sempre algumas balinhas para as madrugadas mal-dormidas. Deixava sempre uma caixinha vazia do seu colírio para que funcionasse como uma “lixeirinha” para os seus papeis de bala. A vó gostava de bala toffee. Mas o rádio era daqueles antigos, claros, escrito na parte anterior: EMPIRE. Na parte posterior, a identificação: Pantucci, Spadari e Cia. Às 3 da tarde a vó ligava o aparelho e ouvia uma novela. Eu achava interessantíssimo ouvir uma novela de rádio. A vó ficava deitadinha na sua cama rente á parede e eu rapidamente pulava para o seu canto, me deitando também e permanecendo em silêncio. Canto de vó é algo sagrado. Principalmente canto da vó Noêmia, que era doce como algo que cheira a esperança. Mulher forte a vó. E muito valente para enfrentar os problemas da vida, mas sempre com compostura! E ouvíamos atentamente o que o capítulo da novela tinha a nos revelar. Tinha um personagem muito especial, o Caqui. Muito engraçado, meio infantilizado que aparecia sempre nos meios das falas mais sérias e densas de conteúdo. E não tinha jeito: ele sempre me encantava. Parece que o Caqui era uma leve e rápida solução para a minha solidão de infância, quando eu não tinha com quem brincar e desenvolver a criatividade e colorir a vida com a beleza das respostas das crianças.

Eu nunca mais me esqueci das novelas de rádio, da pureza de ficar mais perto da vó, deitada no seu canto e, com atenção, ouvindo e viajando pelas vozes que vinham do rádio dos anos 50. O Caqui foi único, impagável e inesquecível!

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 21/05/2010
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