AMIZADE, SUPERLATIVO DE AMOR

AMIZADE, SUPERLATIVO DE AMOR

Maria Teoro Ângelo

Eu havia acabado de chegar da escola quando a vi pela primeira vez. Foi uma simpatia instantânea e avassaladora que nos uniu para sempre, mesmo mais tarde, com um oceano a nos separar. Nunca, nem o tempo nem a distância fizeram arrefecer esse sentimento de amor e amizade, de encontro de almas, de cumplicidade, que só em grau muito menor pude encontrar outras vezes.

Eles vieram morar numa casa de propriedade de meu avô, vizinha à nossa. Gente da melhor espécie, vivendo para o trabalho e a religião, eu tive pleno consentimento para frequentar a casa e assim viver os anos mais felizes da minha meninice.

Minha amiga reunia qualidades que me surpreendiam. Com ela li a coleção completa de Monteiro Lobato e assisti, com inveja, ao seu gênio destemido e irreverente, à sua coragem para desafiar regras, fugindo, por exemplo, das aulas de educação física para visitar o acampamento dos ciganos.

Era em sua casa, na grande sala principal, que ensaiávamos La Marseillaise com Monsieur Willy, um alemão de dois metros de altura, nosso professor de francês. Cheguei a declamar a tradução do hino e a cantar no coro; mas ela, sozinha, enfrentou o palco e, interpretando uma poesia, arrancou lágrimas da plateia ( a poesia fazia alusão ao tempo em que a França fora tomada pela Alemanha e os franceses viam suas regiões sendo perdidas).

Era uma artista, tinha voz maravilhosa para o canto, inventava brincadeiras como desfile de modas de bonecas. Trabalhei incansavelmente na confecção de um vestido branco de brocado de seda com uma imensa capa bordada em pedrarias. Mas ela roubou da mãe um pedaço de renda e fez um vestido cor-de-rosa todo enfeitado de rosinhas de tule em alto relevo, que lhe deu a vitória.

Ela era assim meiga e decidida, franca e otimista, inteligente e humilde, simpática e intrigante, ousada e responsável. Só não era bonita. O corpo tomado por cicatrizes de queimadura, os dentes para fora; um deles vivia caindo, era postiço. Mas quem enxergava essa aparência, se dentro dela havia uma pessoa assim tão interessante, de bom gosto e que nos contagiava de felicidade e prazer pela vida.

No caminho para a escola havia muitas borboletas. Arrumamos uma peneira velha e a lançávamos sobre elas. Presas, debatendo-se pela liberdade e nós rodeando-as para olhar de perto os detalhes das cores e formas. Depois, levantávamos a peneira e elas ainda tontas saíam voando uma a uma indefesas e desorientadas.

Não sei se as outras colegas de turma guardaram dela a imagem que guardei ou se devotaram a ela a amizade que eu devotei. Ela veio como um anjo, alguém que nunca disse nada irônico ou fingido: só verdades. Verdades e observações ditas com carinho, como: “Vamos ver o que podemos fazer a partir daqui.” Alguém que torcia pelo meu sucesso, que não competia comigo. E pensar que éramos tão crianças!

Tinha personalidade, sabia o que queria e sabia lutar. O pai foi transferido e, quando o caminhão de mudança partiu, eu chorei. Chorei a falta que eu sabia que ela me faria. E fez.

Sempre estamos nos encontrando quando ela vem ao Brasil ou quando eu viajo ao seu encontro. E a amizade continua do ponto em que tinha parado. Não há perdas, a gente só vai acrescentando. Desabafamos as mágoas e desenganos que a vida nos oferece, dela tudo posso ouvir e tudo posso lhe dizer. Rimos com vontade, de coração leve. Uma sabe que pode contar com a outra e é bom ter alguém assim com quem contar.

E quando a saudade aperta , eu ainda ouço sua mãe gritar, simplificando o nome pomposo que dera à filha: Rose Marie Helen.

“ Rosa Maria Helena, se eu souber que você está namorando o irmão do Sr. Valdir...”

Mas isso já faz tanto tempo! 14/12/2001