Briga de turma

BRIGA DE TURMA

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 26.05.2010)

É sempre assim: tem a nossa turma e a turma deles. A nossa turma é melhor do que a deles: nós sabemos o que fazemos, nós somos mais fortes, nós nos defendemos mutuamente. Por isto não podemos admitir que eles tenham um canivete suíço como o nosso, de mil funções e um milhão de utilidades, mesmo que o deles seja fabricado na China e comprado no Paraguai. Simplesmente porque, com uma arma tão sofisticada nas mãos, eles vão acabar nos atacando e machucando um dos nossos. E basta deixá-los fazer isso uma única vez sem lhes dar uma resposta enérgica, dura e imediata para eles se acharem os maiorais. Daí a imaginarem que podem nos subjugar e mandar em nós é um passo muito pequeno. Por isso é importante mantê-los sob pressão constante e impiedosa (é simplesmente uma questão de sobrevivência da nossa turma), é fundamental encurralá-los sob a ameaça da nossa ira implacável. Reafirmar nosso controle é vital. Faz muito bem, da mesma forma, dizer que eles são radicais, fundamentalistas, primitivos e bárbaros. Isto cria um clima e acaba por intimidá-los e acuá-los um bocado. Fazendo assim, garantimos a segurança da nossa turma, a integridade do nosso pessoal e a possibilidade de trocarmos figurinhas com eles estritamente segundo os nossos termos e regras, impedindo-os de tentarem nos explorar nesse ou em quaisquer outros negócios.

O único problema de comandar a nossa turma é que a molecada cresce e sempre tem um ou outro indisciplinado que se acha suficientemente grandinho para dar opiniões e ter ideias próprias, e é necessário então enquadrá-lo sem tirar seu estímulo, forçoso baixar-lhe a crista para que brigue ao nosso lado sem fazer perguntas inúteis. Se a gente não fizer assim, deixando muito claro e transparente quem é que manda nesta porcaria aqui, a quem é que se deve reverência, gratidão e obediência incondicionais, vai acabar de um desses moleques se achar no direito de sair por aí a conversar com os caras da turma deles (a qual não vale nada e só não eliminamos da face da Terra por uma questão de humanidade), a negociar uma forma de evitar essa briga tão importante para nós e tão esperada, como se fosse um deles infiltrado traiçoeiramente entre nós.

Digam aí: se fosse com vocês, vocês iriam aturar uma afronta dessas, uma insolência desse tamanho, um desafio de tal porte à liderança da turma? Nem no inferno, não é mesmo?

(Amilcar Neves é escritor com sete livros de ficção publicados, diversos outros ainda inéditos, participação em 31 coletâneas e 44 premiações em concursos literários no Brasil e no exterior)

Amilcar Neves
Enviado por Amilcar Neves em 26/05/2010
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