O MEU AMIGO SUMIU...

Em 1966 eu fui trabalhar na nossa capital Belo Horizonte. Tempos difíceis. Eu ainda quase adolescente tive que sair pelo mundo. Tudo diferente. Gente de outras localidades, culturas outras nos forçando a adaptações. Isto é normal, entendo hoje.

Os ganhos eram poucos exigindo um exercício de matemática financeira para equacionar com as despesas que teimavam em se tornarem maiores. Um mandamento da necessidade determinou que uníssemos, eu e outros três companheiros para alugarmos um pequenino imóvel para morarmos. Em dois pequenos quartos nos acomodávamos como podíamos, mesmo porque ali pouco ficávamos.

O meu companheiro de quarto o J. Alves, um negro baixo e musculoso. Pouco falava, nada perguntava. Sempre sorridente, voz baixa como se negando a deixar a garganta. Uma tarde, em cima da laje, bebeu umas pingas e ai ele falou. Fora criado pelo mundo em creches, instituições para os sem famílias. Perguntei pelos seus pais ele respondeu que não os tinha, nunca conhecera um parente, afirmava que era filho da Terra. Um choque para mim que sempre valorizo a família.

Fiz muitos amigos naquela época que o tempo cuidou de minguá-los por motivos vários. Só conheço endereço e telefone de três, estando um em Contagem, outro em Uberlândia e o último em Passos. Cada um para um lado cuidando de si. De vez em quando a lembrança visita um deles.

Outro dia fui levar minha filha para fazer uma prova na PUC-BH. Deixei-a na porta e fui para o centro, andar sem rumo definido até que ela fizesse a prova. Quando achei que era hora de terminar voltei e não encontrei lugar para estacionar e parei em frente ao portão da garagem de uma casa e permaneci no carro. Pouco a frente havia um barzinho bem movimentado que fiquei olhando por falta de opção. Vi chegando um cidadão com a roupa toda suja pedindo algo aos presentes, sem adentrar ao estabelecimento. Olhei bem e tive a impressão de conhecer aquele rosto. Saltei do carro, impulsivamente, deixando a porta aberta e me aproximei... Olhei bem para ele e ele me olhou também bem nos olhos. Seu rosto não manifestou nenhuma expressão. Era ele, o J. Alves, não podia ser outra pessoa. Tentei estabelecer um diálogo que virou monólogo. Você é o J. Alves? Lembra-se de mim? Moramos junto no bairro João pinheiro! Você namorava a Dalva! Você trabalhava... Você... Você... Parecia que ele ia sorrir. Convidei para ocuparmos uma mesa para comermos e bebermos. Ele foi virando lentamente sem deixar de olhar para mim e depois tomou a rua no sentido da Via Expressa e eu o acompanhei. Passamos pelo meu carro e eu continuei insistindo. Até que toquei levemente o seu ombro e disse: J Alves você não se lembra... Ele parou e olhou-me com tanta serenidade, balançou a cabeça afirmativamente e disse com uma suavidade espantosa:

- De tudo!

Quase sorriu. Virou novamente e eu fiquei parado olhando até ele desaparecer sem olhar para trás.

Meu Deus! Que angustia e vontade de fazer parte da vida dele, mas sem invadir. E de tantas outras pessoas que se isolam. Creio que o que ele quer realmente é continuar sendo filho da Terra. Talvez a única opção que a vida lhe reservou.

J. Alves, Deus Cuida!

Divinópolis, 08-06-2010.

JFerreirinha
Enviado por JFerreirinha em 08/06/2010
Reeditado em 12/12/2011
Código do texto: T2307405
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