O Soldado

O Soldado

Se te disser quantas vezes quis sair da guarita e viver como os outros vivem, os outros, os que fazem movimentos circulares e respiram fundo, os que sorriem por nada e os que estão sempre sorrindo, se te disser quantas vezes quis dar vazão a emoções que já nem lembro ou que jamais tive, se te disser, não, não digo, não poderia.

Fui soldado a vida inteira.

Às vezes a melodia de uma canção, às vezes uns versos, coisas assim, exalando que perdi certas situações e que desperdicei certos momentos, tudo para ser um soldado e usar uma farda. Se te disser que agia como dono de minha guarita e que eu não combatia e também não fugia, se quiser saber, limpava a guarita e deixava a farda asseada, esses eram meus principais deveres, além, é claro, da retidão. Por longos períodos julguei os civis de soslaio, julgava-me superior a eles e julguei assim por tantos períodos que passei a acreditar que tal postura fosse plausível. Ocasionalmente, um oficial graduado aparecia e me lembrava a minha posição.

Lutei com meu olhar fincado no silêncio de discursos ásperos, jamais proferidos. Lutei para contê-los.

Engraxei minhas botas, pois ninguém engraxa as botas de um soldado a não ser o próprio soldado.

E aspirei a posições maiores, eu não diria em vão, tampouco diria com paixão, aspirei com a expectativa do peixe de rio ao perceber o salobre. Então retomava a consciência de minha farda, minha guarita, de minha postura de sentinela cuja respiração curta não deixava espaço para nenhum anseio fora do meu perímetro.

Nada pode derrubar uma sentinela.

Essa era, via de regra, minha crença condutora.

Os domingos eram os piores dias, as tardes de domingo, quando famílias inteiras passavam por mim.

Fui soldado a vida inteira.

Tive de servir de barriga vazia e cansado. Tive de dormir sonhando com mais um prato. Invejei aquele homem de camisa esporte abraçando a mulher bronzeada de sol, assim como invejei o avô levando os netos para o colégio. Muitas pessoas passam defronte a minha guarita.

Posso dizer que em dado instante quis me livrar da farda e jogar tudo para o alto. Não suportava a idéia de ser um soldado. E todas as vezes que me livrei da farda me trouxeram outra, porque estava escrito que eu seria um soldado, desde o dia em que nasci embora nunca ninguém, em momento algum, tenha me mostrado esse pedaço de papel, com meu nome escrito nele, e minha categoria – soldado.

Servi no frio e no calor, servi em temperaturas amenas, servi de prontidão, mesmo quando me achavam relaxado, e não encontrei vivalma a quem eu pudesse confessar que me sentia cansado.

Fui soldado a vida inteira e continuarei a sê-lo, mesmo que não esteja escrito em lugar nenhum. Foram-se vários períodos até que eu aprendesse a gostar da minha posição. O fato é que gostei, antes mesmo de me acostumar com ela.

Já não faço marcas na coronha da arma e já não reconheço os inimigos.

Ainda reservo a nítida lembrança do dia em que o ministro apareceu, não um ministro de estado, ele nos disse que todos, todos sem exceção, não apenas soldados, tem seu fardo nessa vida. Que ele é distribuído igualmente. E que devemos vigiar. Disse também outra coisa, embora não me recorde agora.

Fui soldado em tempos de paz embora tenha sido enviado em missões clandestinas e não seria capaz de confessá-las a homem algum em qualquer tempo, nem mesmo a outro soldado.

Certa vez, uma única vez, me atrevi a dar baixa e me aventurar pelo mundo. Logo em seguida um general apareceu dizendo que minha tarefa era inestimável, pois generais não poderiam fazer o serviço de um soldado. E que ele, o general, fazia por mim coisas além da minha compreensão, como, por exemplo, assinar tratados para a manutenção da paz.

Pensei bastante no assunto, mesmo com a farda puída e as botas gastas.

Ainda retenho a vívida lembrança do dia em que um homem, não era ministro ou general, se aproximou da guarita para pedir fósforos. Entre uma baforada e outra ele me disse que os que aguardam e observam também estão servindo.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 11/06/2010
Reeditado em 02/11/2012
Código do texto: T2313486
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