DIA DE VESTIBULAR
 
      Acordei cedo. O despertador estava regulado para as seis horas da manhã. Por garantia, pois poderia cochilar, deixei regulado o celular, para despertar cinco minutos depois.

     Levanto-me. Sonolento, vou até o quarto de meus filhos, e lá dormem minha esposa e minha filha.


     Abro a porta, e me preparo para acordar minha querida “filhota”, e ela, ainda no escuro de uma fria madrugada, já acordada, responde: Pai, já vou me levantar.


     Hoje é domingo. Normalmente ela aproveita os domingos para acordar pelo final da manhã. Hoje, ela já está acordada. Orgulhoso penso: Isto é compromisso. Meio triste completo: Isto é preocupação e ansiedade para não perder o horário.


     Hoje é dia de vestibular!


     Minha filha, uma jovem menina, na exuberância ingênua de seus dezessete anos, tenta pela primeira vez, o vestibular. Ainda é junho e a neura do vestibular já bate forte nesta juventude.


     Sem cursinho. Sem ter terminado o segundo grau. Ela está prestes a debutar nesta concorrência absurda por uma vaga, em uma ótima universidade.


     Esta louca jornada teve início ontem. No fundo, teve início no primeiro dia de aula deste ano. Talvez antes ainda. Aprovada na segunda série do segundo grau, a mente dela deve ter iniciado, mesmo que inconscientemente, a digerir que agora é chegado o vestibular.


     A última série do segundo grau deveria ser um ano de festas, de confraternização, de alegria pelo dever cumprido de ter terminado mais uma fase, em sua vida. Agora ela deixará a escola, que foi seu segundo lar, por emocionantes sete anos.


     Foram sete anos onde a vida dela foi ganhando saber, maturidade e respeito às regras.


     Alunos que viraram colegas, e destes vários foram pinçados como amigos. Anos de muito estudo. Anos de paqueras. Professores que viraram mestres, e mestres que se transformaram também em amigos.


     Foram anos que viram uma criança se transformar em uma jovem mulher. Experimentou a passagem pelos quinze anos com muita personalidade e dignidade.


     Personalidade sempre foi uma característica forte em minha filha. A dignidade foi construida passo a passo, ao nosso lado, e ao lado da escola.


     Ainda criança, terminada a quarta série, preocupados que estávamos em colocá-la em uma boa escola, nos mesmos moldes de seu irmão, que já cursava o Colégio Pedro II, nossa filha tentou concurso tanto para o Pedro II, quanto para o Colégio Militar do Rio de Janeiro.


     Aquela criança, decidida, estudou e passou para ambos.


     Orgulhosa de si, optou pelo Colégio Militar.


     Hoje posso confidenciar um segredo: uma família típica de civis. Uma menina tratada a pão de ló. Não acreditei que ela se adaptaria a uma instituição onde a regra, a ordem, e o respeito à hierarquia, ao lado de um ensino sério, são suas marcas maiores.


     Dia após dia, semana após semana, ano após ano, aquela criança cresceu junto com a escola. Graduou-se. Fez uma parceria, quase simbiótica, com aquele colégio.


     Todo dia, acordava por volta das cinco horas. Feliz e orgulhosa, ia para o colégio.


     Só faltou a escola, nestes sete anos, quando algum problema médico a impossibilitava totalmente de ir.


     Aula inaugural, primeira formatura, cerimônia de entrega da boina, primeiro seis de maio, primeira solenidade oficial, representando o colégio. Cerimônia de ingresso para a Cavalaria, desfiles de sete de setembro, prêmios da câmara dos deputados, e finalmente, é chegado o último ano.


     Último seis de maio, último dia da Cavalaria, último ano. Este deveria ser um ano de festas, porem a vida não é bem como gostaríamos que fosse.


     A vida marcha, insensível, em sua frieza. Minha filha precisa dividir o ano de festas, com o ano da séria luta por uma vaga, em uma grande universidade.


     Hoje é o dia da sua primeira real prova de vestibular. Primeira fase do concurso para uma das melhores faculdades públicas do Brasil.


     A Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, é sua escolha natural para Direito.


     O irmão já cursa Engenharia nesta universidade, abrindo mão da UFRJ, pela UERJ.


     A luta começa. Este momento teve, na verdade, início ontem.


     O dia de vestibular, para os vestibulandos, não coincide com o dia civil. Ele não começa as zero hora do dia da prova. Ele tem início no dia anterior.


     Ansiedade natural, principalmente para uma debutante em vestibulares.


     Organizar documentos, confirmação de inscrição, confirmar horário da prova, escolher aquela roupa especial, última vista de olhos naquelas malditas questões mais complexas. Agendar um taxi, para o início da manhã do dia seguinte. Confirmar lanche que vai levar. Nada, absolutamente nada, pode dar errado.


     - Danny, é hora de dormir. Falava eu desde as vinte e duas horas. Repeti esta ladainha inúmeras vezes. Uma hora da manhã, e ela ainda não dormiu. Maldita ansiedade. Bendita responsabilidade.


     Finalmente o sono chega e ela adormece. Se não um sono profundo, completo e reconfortante, pelo menos um sono repousante.


     Amanhã vai ser o dia.


     Como o irmão estivesse resfriado e com certa dificuldade de respirar, ele dormiu no meu quarto para não incomodar a noite da irmã.


     A mãe foi dormir no quarto com ela. Cama dupla, daquelas tipo gaveta. Danny dorme na cama de baixo. Minha esposa dorme, ao seu lado, na cama de cima. A mãe dorme com o desejo de dar toda a sorte do mundo para a Danny.


     Apartamento pequeno. Quarto pequeno. Uma vez a cama aberta, praticamente não sobra espaço livre.


     Minha filha sempre reclama de não ter uma mesa própria para estudar. Linda em seus cento e quarenta e nove centímetros de altura, ela, o que tem de pequenina, tem de especial. A mesa da sala, a única do apartamento, se torna muito alta para ela, e nada “ergonométrica”, fazendo o ato de estudar na mesa, uma tarefa desconfortante.


     Não tem problema. Ela se espalha, no seu quarto, pelo chão e pela cama, para estudar.


     Agora ela dorme, no mesmo espaço em que muito estudou.


     Confirmo que o despertador está pronto para nos acordar, daqui a pouco. Como garantia, confirmo a programação do celular, para despertar minutos após as seis horas.


     O despertador toca. A primeira reação foi de questionar mentalmente que se hoje é domingo, porque o despertador tocou? Tocou... Ele tocou porque hoje é a primeira prova de vestibular de minha filha.


     Em um relance, abro os olhos. Certifico-me que meu filho esteja bem. Levanto-me. É cedo. A manhã ainda ousa esconder a claridade. O sol ainda não deu presença. Acendo luzes, e vou até o quarto de meus filhos, para acordar minha pequenina.


     Abro a porta e ainda no escuro ouço: Pai, já vou me levantar.


     Recito baixinho: São seis horas da manhã.


     Se eu estou com sono, é lógico que ela também esteja. Ledo engano meu.


     Vou até a cozinha, seguido por um lindo gato vira-latas, que parecia não entender, afinal, até para ele, hoje é domingo.


     Pegando o saco da ração, completo o seu pote, vermelho, com um bom volume dela. Ele apenas me observa. Me abaixo e aponto o pote de ração. Este é o sinal que ele deve fazer sua primeira refeição do dia. É um ritual que repito, diariamente. Se não apontar a ração, o sapeca do gato não come pela manhã.


     Retorno para a sala. Sento-me na poltrona. Com sono, tenho vontade de cochilar. Ouço alguém utilizando a pia do banheiro. Apartamento pequeno tem destas coisas. É difícil, praticamente impossível, passar despercebido. Os sons perpassam por todo o apartamento.


     Sem acreditar, levanto-me, procuro minha filha no quarto, e a sua cama já está vazia.


     É ela quem no banheiro, faz seu ritual de higiene matinal.


     Instantes depois está, minha filha, praticamente vestida. Camisa vermelha da Cavalaria do Colégio Militar. Calça blue jeans. Sandália. Falta apenas o cabelo e a maquiagem. A camiseta da Cavalaria é para lhe passar boas energias, ela me diz. Isto é que é paixão pelo Colégio e pela Cavalaria.


     Minha filha é bem vaidosa. Cabelos e maquiagem são necessidades de primeira ordem.


     Reparo que ainda estou com a bermuda com que dormi.


     Num pulo, vou até o quarto e me visto.


     Volto para a sala, agora já pronto, e ela está sentada. A gata siamesa no colo, e o vira-latas deitado ao seu lado, como que a desejarem boa sorte.


     Ela se levanta, vai até o espelho da sala, na parede lateral. Ergue a gata, esticando-a com carinho e fala: Ela é linda e também cumprida, não é pai?


     Estando já vestido, questiono se ela prefere leite com chocolate, ou café com leite.


     Na hora ela responde: Nescau.


     A manhã é fria, e eu a convenço a beber um belo e saboroso café com leite morno. Ajudará a esquentar seu corpo, afirmo. O café ajudará a dar aquela ignição inicial, graças a cafeína.


     Preparado o leite, ela busca algum biscoito para acompanhar. Indico um salgado, pois acredito que o sal cairá melhor, uma vez que o leite já está com açúcar.


     Ligo para a cooperativa de taxis. A atendente me informa que não tinha reserva. Pesquisa, e me pede um tempo para retornar.


     Neste momento, sete horas, e estamos prontos. A atendente da cooperativa nos liga e informa de vinte a trinta minutos de espera, pois não encontrou reserva alguma.


     Impossível! Nossa meta é chegar ao local da prova com pelo menos uma hora e dez minutos antes do seu início. Não podíamos esperar este tempo todo.


     Informo a atendente minha premência. Esta me solicita um novo tempo para procurar outro veículo. Como demora o retorno da atendente, minha filha interrompe e fala: Pai, não quero me atrasar. Vamos descer e pegar um taxi da rua mesmo.


     Normalmente não gosto de que meus filhos andem de taxis avulsos. Como estaria junto, achei a proposta coerente.


     Chamei a atendente e pedi para cancelar a solicitação do taxi.


     Moramos em Santa Tereza, em uma rua sem saída. Tínhamos que descer toda a nossa rua, até chegarmos a via principal. Lá conseguiríamos um taxi.


     Enquanto descíamos nossa rua, entra um taxi. Comento: Vai ver que é o solicitado. Ele pisca o farol e me chama ainda mais a atenção.


     Falei: Danny! Deve ser o nosso taxi. Próximo a nós, ele praticamente para e pergunta: Senhor Arlindo? Rapidamente procuro a identificação da cooperativa, e é da própria.


     Respondo então: Sim.


     O motorista se desculpa pela demora, e comenta que resolveu subir a rua sem compromisso, pois ele já tinha morado, por mais de quinze anos nesta rua, e o meu nome lhe era familiar.


     Entramos no taxi e fomos conversando até o local da prova.


     Chegamos apenas cinco minutos após o que havíamos planejado. Ótimo. Pago o taxi e vamos direto para a fila de entrada.


     Recebo um jornal da Folha Dirigida. Uma edição especial sobre a UERJ.


     Na fila, repito para que ela não se preocupe. Ela é nova. Não fez cursinho algum. Mesmo que ela errasse tudo, eu a amaria da mesma forma.


     Normalmente sou muito exigente quanto aos estudos. Valorizo muito a instrução. Mas entendo que ela fez a parte dela, que era estudar. A nota será então apenas um detalhe. Ficaria sobremaneira chateado, se ela não houvesse estudado.


     Ela entrou para a prova. São oito horas. A prova terá início às nove horas, com previsão de término para as treze horas.


     Esperar cinco horas. Isto é brincadeira de criança. Nem chovendo está!


     Aqui estou eu, sentado no meio fio de uma rua secundária, do lado de uma viatura da Policia Militar. Pelo menos sinto-me protegido.


     Caderno e caneta na mão, aqui estou eu escrevendo. Nuvens cobrem o céu. O sol se esconde, mas e daí? É a primeira prova de minha filha, pode chover, não tem problema, pode esquentar, pode qualquer coisa. Daqui eu não saio.


     Pensamento positivo. Torço imensamente por ela. Se pudesse entraria para fazer a prova de física, para ela. Português ela me dá um banho. História, ela gosta e arrebenta.


     O sol começa, de novo, a aparecer. Isso é luz, isto simboliza saber, isto é vida.


      Boa prova filha.

Arlindo Tavares
Enviado por Arlindo Tavares em 15/06/2010
Reeditado em 15/06/2010
Código do texto: T2321175
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