Sumidouro

Voltávamos do Carmo via Nova Friburgo em um ônibus parador. Éramos crianças. Sentamo-nos todos separados uns dos outros. Só o caçula da família estava junto da minha mãe. Na época não existia rodoviária na cidade. Os ônibus paravam na praça principal do Centro. Comprávamos os bilhetes de passagem num mercado misto de armazém, padaria e lanchonete. Agora rumávamos por uma estrada ladeada por belas paisagens. Meus olhos de criança não me enganaram. Nem os de adolescente porque os olhos de homem confirmaram as cenas com o mesmo encanto de outros tempos. Só que com outra intensidade e outro sabor. As companhias já não eram as mesmas. Agora éramos dois casais.

O carro corre e o vento nos bafeja cheiro de verde. Entrávamos numa localidade chamada Murinelli. Até hoje me lembro de uma árvore de nome desconhecido para mim. Tinha a silhueta de um salgueiro, mas com flores de um tom não sei se rosa ou lilás. Ficava do lado direito da estrada numa curva ao alto, à entrada de uma propriedade povoada de outras flores. Essa imagem não me sai da cabeça até hoje. As flores da tal árvore pareciam me abençoar a memória como num batismo. Atravessamos por baixo dela num verdadeiro rito de passagem. Penso que daquele dia em diante não fui mais o mesmo viajante. Pela primeira vez passei a gravar o nome das localidades por onde andava. Agora me tornava consciente de onde pisava. Os terrenos passaram a ser cada vez mais férteis para mim mesmo em pura areia ou pedra. As flores e os arbustos eram presentes. Sempre-vivas perpétuas. Beijos da serra rosas e violetas. A paisagem cada vez mais modificada e colorida. Agora de casas simples e ajardinadas. Chegávamos a Sumidouro.

Era uma cidade pequena como o Carmo, porém parada no tempo. Quase trinta anos depois a praça ainda era a mesma. Tive certeza de minha iniciação. Não foi preciso passar pela árvore de flores choronas. Acho que não era rosa. Agora me parecia lilás. Antes dava pequenos tapinhas divertidos no teto do ônibus. Era suave e terna. Hoje deslizaria sensual sobre o capô do automóvel mesmo não estando mais lá. Ela sumiu. Na realidade foi transplantada por mim para mim dentro de mim. O vento bateria e ela requebraria faceira e lânguida. O carro poderia ser conversível. Ela tocaria meu pescoço e eu ficaria arrepiado. Onde estava a tal árvore? Não importa. Eu tenho uma rosa. A praça principal em Sumidouro tem várias rosas, mas nenhuma delas tão bonita e viva como a minha. A igreja é a mesma. O comércio é o mesmo. Até as pessoas parecem as mesmas. O tempo parou por ali. Nós continuamos o caminho.

Onde estaria Bela Joana? Nunca soube. Bela Joana está em Sumidouro. Resiste numa casa de pau-a-pique a beira do caminho outro por onde não mais caminhei. O tempo também parou para Bela Joana.

Estrada e estrada. Friburgo! Os três filhos e a mulher descem do ônibus.

─ Mãe, quero fazer xixi!

─ Mãe, quero beber água!

─ Mãe, deixa eu comprar as passagens!

─ Mãe! Mãe! Mãe!

Coitada!

─ Espera! Que coisa! Vocês não se mandam. Eu vou comprar as passagens. Depois vamos ao banheiro.

─ Mas eu quero água.

─ Tô com fome.

─ Posso tirar o sapato?

─ Depois a gente come e bebe água.

─ Mãe, nós vamos na casa de Tia Dite?

─ Ela nem sabe que a gente está aqui. Vamos para casa.

─ Mãe, porque esse telhado é quadrado?

─ Que telhado, Vadinho?

─ Esse aqui. Ele é todo quadradinho.

─ Não sei, meu filho.

Agora tive de forçar a memória. Acho que estávamos próximos da pérgula do jardim de inverno da rodoviária. Não quis café com leite (sempre detestei essa bebida). Queria chocolate quente. Minha mãe concordou porque era inverno. Em casa só podíamos comer chocolates na época fria (quando era criança ainda existia frio por aqui. Usávamos até casacos e pulôveres).

─ Corre, Vadinho, o ônibus já vai sair!

─ Mãe, eu quero ir ao banheiro.

─ Não acredito, minha filha. Porque você ainda não foi?

Silêncio...

─ Vamos, Nizinha. Zezinho, vem com a mamãe.

─ Eu vou no banheiro dos homens – disse meu irmão.

─ Você ainda não se manda. Entra logo que o ônibus já vai sair.

Essa confusão foi providencial para acabar de saborear meu chocolate.

Muita estrada ainda pela frente em Sumidouro. Saímos pela esquerda em caminho de pedras. Como chegaremos a Friburgo? Por aqui ou por ali? Outro motorista nos indicou por que braço da bifurcação deveríamos seguir ao Centro de Nova Friburgo.

Era a primeira vez de meus amigos e minha namorada na cidade serrana. Seguimos. Não chegamos ao Centro. Entramos no Campo do Coelho. Visitamos o Jardim do Nêgo (é assim mesmo que se escreve com acento circunflexo no “e”) pelo lado de fora e fizemos muitas fotos bacanas por lá. O caminho seguia até a Casa da Suíça com sua Escola de Queijos. Entramos famintos, mas não nos agradamos do cardápio. Nenhum de nós come salsichas. Ninguém quis ir ao Museu de Taxidermia aos fundos. Minha namorada e meu amigo estavam famintos. Eu e a namorada dele estávamos (inacreditavelmente) sem muita fome. Fomos procurando um lugar para comer na beira da estrada. Encontramos uma placa indicando um restaurante a 1.300m. Entramos no local indicado. Seguimos pelo meio do bosque até uma casa. Olhamos e lá outra placa indicava “Restaurante a 1km”. “Vamos voltar” – disseram minha namorada e nosso amigo. Eu e a namorada dele dissemos para continuarmos porque já havíamos andado tanto e 1km a mais ou a menos não faria diferença. Continuamos no meio do mato. Chegamos a uma madeireira. Retornamos porque não enxergamos a pequena estrada que conduzia ao restaurante. Subimos por um caminho de paralelepípedos até uma casa belíssima. Achamos estranho um grande cachorro nos atacar. Pudera! Entrávamos na casa de alguém. Retornamos e finalmente encontramos o caminho correto. Que maravilha! O local era lindo com mirante em balanço sobre o vale, uma piscina e belos jardins. Na realidade, tratava-se de uma pousada. O restaurante era aberto aos não hospedados. O serviço era de bufê com preço único incluindo-se a sobremesa (uma pechincha levando-se em conta a qualidade da comida). A decoração era incrível e lembrava Minas Gerais. Na sala de estar havia um mapa pendurado na parede e uma lareira (estamos em Teresópolis na Serra dos Órgãos e faz frio no inverno – e nas noites de verão também). Visitamos as suítes. Eram belíssimas e aconchegantes. Nos despedimos desse lugar incrível prometendo voltar em breve.

Já acabei de tomar o chocolate. Saímos correndo e embarcamos no ônibus para Niterói. Descemos a Serra. Mesmo passando por meu município, não era conveniente saltar no bairro de Alcântara e voltar para casa. Os horários de ônibus eram muito espaçados naquela época. Preferimos então seguir para Niterói, a terra natal do meu pai. Saltamos na Rodoviária. Tomamos outro ônibus para nosso bairro em São Gonçalo.

Num dado ponto da estrada paramos num caixa eletrônico para sacar dinheiro ainda em Teresópolis. Rumamos. Abastecemos o carro sob muita chuva num posto de gasolina. Seguimos Deixamos minha namorada em casa. Nossos amigos me deixaram em minha casa. Subi a rampa de acesso à varanda com uma mala bem grande. Estava feliz.

─ Vó, chegamos!

Beijos e beijos.

─ Que coisa “loca!”.

─ Boa noite, Dona Laura.

─ Boa noite, Eni. Como está Dona Geralda?.

─ Tá bem, Dona Laura e a senhora ficou bem aqui em casa?

─ A casa estava bastante silenciosa. Uma paz que só Deus....

Como a conversa entre sogra e nora é interessante, não? Mais interessante é lembrar que percorremos quilômetros e quilômetros em algumas horas de viagem obrigatoriamente feita em ônibus ou automóvel, voltamos para casa e as paisagens costumeiras de minha primeira infância ainda são bem familiares embora desapareçam de meus olhos e pés continuamente como o rio que atravessa a cidadezinha e some debaixo da terra. Essa terra de rio matreiro e peralta (Ou seria tímido?) também esconde a origem de minha mãe – Bela Joana. Essa cidade esconde nossas pegadas. Nela absorve-se o futuro que some dentro das casas de seus cidadãos ou em prédios públicos e renasce mais à frente em Nova Friburgo. Essa cidade esconde-se na Serra e no tempo como as águas sumidouras de seu rio Sumidouro.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 17/06/2010
Código do texto: T2325871
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