O ASSASSINATO DO ADVOGADO EUGÊNIO LYRA

O ASSASSINATO DO ADVOGADO EUGÊNIO LYRA

Por Jota Kameral

Texto

Tudo parecia calmo naquele dia 22 de setembro de 1977 na cidade de Santa Maria da Vitória. A primavera já estava adentrando a porta da natureza, e o perfume das flores dos gerais já estava sendo Inalado por todos os seres vivos racionais e irracionais. Os cidadãos santa-marienses levavam uma vida normal, marca maior de uma cidade do interior da Bahia, sem acontecimentos de grandes relevâncias, apenas o trivial.

Os alunos do Centro Educacional Santa-Mariense, mais precisamente do segundo ano técnico, tinham sido escalados para assistirem a uma palestra que seria ministrada pelos Educadores do Mobral, que estavam fazendo trabalhos educacionais nas redondezas.

Sabedores desta tarefa, os alunos Waldemar, Izidrio, Geraldo, Jorge de Zifina, Joãozinho de Dona Rosa, Regina, Lurdinha de Mário Campos, Godoia, Sissi, etc. deixaram o colégio rumando para o colégio municipal que ficava no Alto do Menino Deus. Passaram pelo Jardim Jacaré, cruzaram a ponte sobre o riacho seco, subiram a rua do mercado, e, na esquina da casa da Sissi, ao dobrarem a rua já entrando na Rua Teixeira de Freitas, viram o Dr. Eugênio Lyra em uma barbearia, sentado na cadeira de barbeiro recebendo um tratamento na barba e ao seu lado, sentada em uma cadeira, esperando pelo término do serviço, estava a Dra. Lúcia, grávida, linda e sorridente como sempre. O grupo, ao passar pela frente da barbearia, cumprimentou os dois:

- Olá doutor, olá doutora, tudo bem? Eles acenaram respondendo para o grupo que seguiu rumo ao local da palestra.

Após mais ou menos cincos minutos da chegada do grupo no colégio, algumas outras pessoas chegaram e disseram:- Não haverá mais a palestra porque acabaram de assassinar o Dr. Eugênio há poucos minutos.

— Deixa de brincadeira de péssimo gosto! Respondeu Waldemar, o Dema; passamos há pouco e até cumprimentamos o Dr. e a Doutora Lúcia.

— É verdade! A cidade está todo em polvorosa complementou a pessoa.

Realmente e infelizmente era verdade. O assassino já estava de butuca, inclusive os alunos do Centro Educacional de Santa Maria, cruzaram com ele , provavelmente, pois havia alguém parado em um dos postes, logo na subida para o Alto do Menino Deus e não parecia despertar nenhuma suspeita. Antes de continuar a história discorrerei abaixo alguns dados necessários para que haja uma melhor compreensão.

BIOGRAFIA

(*) Eugênio Lyra nasceu no dia 8 de janeiro de 1947 em Senhor do Bonfim, Bahia . Começou a frequentar uma escola particular com apenas 5 anos e, com 07 anos passou a frequentar uma escola pública no primeiro ano. Gostava muito de ler e lia tudo o que via pela frente.

Aos 11 anos cursou admissão no ginásio Marista. Sempre foi um aluno muito esforçado e de comportamento ótimo. Neste mesmo ginásio concluiu a 4ª série com 15 anos e logo rumou para Salvador, continuando os estudos por lá. Morava em uma pensão, em um quarto dos fundos; passou horas amargas e grandes sacrifícios para alcançar o que ele mais desejava.

Fez o Científico no Colégio Central, um dos melhores de Salvador. No mesmo colégio estudava Lúcia e, como colegas, estudaram juntos e desta amizade nasceu o amor. Juntos fizeram o vestibular e passaram continuando os estudos juntos na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.

Como estudante, aos 18 anos lançou o seu primeiro livro, intitulado Fogos Fátuos e mais tarde lançou o segundo livro, Abismos, ambos de poesia. Isto já em 1968. Nesta época ele estava com 21 anos.

Em 1969, quando estava estagiando, a primeira causa foi de uma senhora humilde que estava para perder a casa e ele fez todo o possível para que aquela senhora tivesse sua casa de volta.

Em 8 de dezembro de 1970 formou-se; em 1971 casou-se com Dra. Lucia e juntos montaram um escritório de advocacia na Rua Chile, em Salvador, onde laboraram por algum tempo. Eles eram chamados para trabalharem em diversos sindicatos no interior da Bahia viajavam bastante por várias cidades como Feira de Santana, Cachoeira, Santo Antonio de Jesus, Riachão do Jacuípe e muitas outras.

Eugênio foi transferido para Santa Maria da Vitória em 5 de abril de 1976 fixando residência atendendo aos trabalhadores rurais, residindo inicialmente na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santa Maria e Coribe, na rua Cotias Lebre, beira do cais, atendendo os camponeses e os posseiros que sofriam com as ações dos grileiros e poderosos.

Tanto Dr. Eugênio quanto a Doutora Lúcia, que veio pra Santa Maria pouco tempo depois, trabalhavam com amor, humanidade e dedicação no atendimento àquela gente tão sofrida e tão abandonada pelo poder público do Estado da Bahia, e com isto fizeram muitas amizades na cidade mas, em razão disto, também criaram alguns inimigos invisíveis e poderosos.

Certa vez foram convidados por um grileiro poderoso que lhes ofereceu uma boa quantia em dinheiro para que ficassem do lado dos grileiros e contra os lavradores, ideia totalmente rechaçada. A partir daí as ameaças e as perseguições. Dr. Eugênia e Doutora Lúcia eram pessoas tão puras de alma que jamais passou pela cabeça deles que alguém fosse capaz de fazer-lhes o mal. Mas estavam errados, infelizmente.

OS CONSPIRADORES.

Eymar Portugal Sena Gomes, então Delegado Regional, chegou a Santa Maria no início dos anos setenta, homem de elevada cultura com mentalidade moderna, para uma cidade do interior. Em 1973 Celinha Rodrigues fundou o jornal “Líder” que funcionou de 1973 a 1974, tendo como colaboradores, Jairo Rodrigues, George Wellington, Joãozinho de Dona Rosa e algumas vezes a colaboração do Eymard Portugal, que gostou da ideia da fundação do jornal e colaborou com ele em algumas oportunidades.

Waldely Lima Rios (o Lico) também chegou à cidade de Santa Maria no início dos anos setenta, proveniente do estado de Minas Gerais; era um fazendeiro conceituado, partidário da Arena I, partido da situação, orador ardoroso nos comícios que eram realizados nas zonas rurais em campanha política à prefeitura da cidade em 1976. Seu filho mais velho era nosso colega de rua e estudava também no Centro Educacional de Santa Maria da Vitória.

"Delegado Abílio, era uma pessoa pacata, cidadão acima de qualquer suspeita, amigo de todo mundo, um sujeito humilde, bom marido, bom pai, bom avô e que acabou sendo envolvido, com certeza, pelo poderoso chefe: o Delegado Regional. (O delegado Abílio não fez parte dos conspiradores, apenas acabou sendo envolvido pelo Delegado Regional, que era seu chefe)"

Havia também dois fazendeiros, cujos nomes não os tenho na memória. Suas filhas também eram nossas amigas e estudavam no Centro Educacional de Santa Maria. Eles foram os negociadores na contratação do pistoleiro, através de um escritório de negociação existente em Vitória da Conquista, a mando do então Lico, o Caput principal da conspiração que resultou no assassinato do advogado.

Wilson Gusmão, pistoleiro assassino, egresso de uma família de pistoleiros de aluguel, contratado por quarenta mil cruzeiros.

A CONSPIRAÇÃO

Diante das perdas na justiça , o Lico, representando os poderosos grileiros, sendo ele também um destes grileiros, pois havia jurado de morte o Dr. Eugênio, e, através do Advogado Alberto Nunes, Cantídio de Oliveira e João da Costa da Silva, tudo com a cumplicidade do próprio delegado de polícia regional, Eymard Portugal, que intermediaram a contratação do pistoleiro, decretando assim a sentença de morte do advogado Dr. Eugênio. O pistoleiro Wilson Gusmão, carrasco então contratado por CR$ 40.000,00 e que chegou a Santa Maria de maneira silenciosa, e o seu cenário diário de ação na cidade era nas ruas Rui Barbosa, Dona Rosa Oliveira Magalhães, Praça da Bandeira, Rua do cais de Tenente e a Rua Teixeira de Freitas.

Isto tinha uma explicação.

Nas ruas, Rui Barbosa, ficavam os escritórios dos advogados, Dr. Hermilton e Dr. Zequinha, ambos colegas que sempre eram visitados pelo Dr. Eugênio; na rua Dona Rosa ficava o escritório do Dr. Zalmir Rocha, também colega que era visitado de vez em quando. Na Praça da Bandeira, por ossos do ofício, ficava o Fórum da Comarca e a presença diária se fazia necessária. Na rua do cais de Tenente, ficava a Sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, local de trabalho. Na rua Teixeira de Freitas, ficava a residência do Dr. Eugênio e Dra. Lúcia.

O CRIME

O pistoleiro Wilson Gusmão não estava conseguindo concluir a sua tarefa, embora tentasse por várias vezes, mas, segundo informou em depoimento, já que a ordem seria para assassinar o casal, mas, por ser a Dra. Lúcia uma mulher e estar grávida, ele titubeara várias vezes, também por receio e insegurança de errar o tiro. Acontece que a situação para os poderosos já estava ficando no limite, pois, no próximo dia 23 Dr. Eugênio iria para Salvador para depor na CPI da grilagem e isto, com certeza, denunciaria o nome de muitos poderosos, para a logística assassina a execução não poderia passar daquele dia 22 de setembro de 1977, de qualquer jeito, custasse o que custasse.

Os conspiradores ficaram sabendo que o Dr. Eugênio estaria no Fórum aquela tarde e avisaram ao pistoleiro que ficou de butuca (tocaia) na calçada do bar de Maninho, só que a chegada do advogado ao Fórum e saída foram muito rápidas e pegaram o assassino de calças curtas. A essa altura, os conspiradores já encontravam-se em desespero corrente, até que ficaram sabendo que o Dr. Eugênio estava em uma barbearia logo no início da rua Teixeira de Freitas e ordenaram para que o assassino rumasse para lá e fizesse o serviço imediatamente.

Tenho a certeza de que, se o movimento de pessoas transitando no local para a ida à palestra do Mobral no momento em que o Dr. saísse da barbearia fosse mais intenso, talvez o plano desse errado, mas infelizmente não foi isso o que aconteceu.

Após o término dos serviços Dr. Eugênio e Dra. Lucia saíram da barbearia, ele a colocou no carro no banco do carona, fechou a porta e, quando deu a volta para entrar, foi surpreendido pelo assassino que apenas deu um tiro na testa à queima-roupa. Dra. Lúcia ainda correu atrás do assassino, e teve coragem e força para dirigir o jeep até a casa do amigo Dr. Hermilton para pedir a ajuda dele.

A COMOÇÃO

A Praça da Bandeira e o Jardim Jacaré ficaram lotados de repente. Chegavam pessoas de todos os lugares. Uns perplexos e outros chorando, como era o caso dos trabalhadores rurais da região. Diante deste quadro de tristezas, e indignação, uma figura emerge da calçada do bar de maninho, incólume, ereto, andando em câmara lenta em direção do caixão que chegava para o velório na Igreja Católica da cidade, cedida pelo padre Augusto, que era um grande amigo dos posseiros e trabalhadores rurais. Era o Lico. Lembro-me bem de ter ouvido um comentário de alguém: Este cara tem culpa no cartório!

Durante toda a sexta feira, até que o corpo fosse transladado para a terra natal do Dr. Eugênio, houve muitas manifestações, estudantes fizeram passeatas exigindo justiça, muitas exéquias, feitas pelos posseiros e trabalhadores rurais. Padre Augusto rezou as missas de corpo presente. Eu também participei do velório acompanhando a chegada das pessoas que adentravam a igreja. No caixão jazia o cadáver do homem que ainda tinha muito para dar pelos trabalhadores rurais e posseiros. A marca da bala na testa era o carimbo dos poderosos que sempre se acharam no direito de mandar calar as pessoas que os incomodavam; e Dr.Eugênio, entre outros, era um deles. Como o Chico Mendes a Dorotty.

A prisão preventiva do Lico foi decretada imediatamente e a polícia a executou. Segundo informações, algumas pessoas já suspeitavam do que poderia acontecer, inclusive na cidade do Bom Jesus da Lapa já se sabia que haveria o assassinato e em razão disto e dos fatos que ocorreram em relação às ameaças, o Juiz decretou a prisão preventiva do Lico para que ele fosse investigado, pois era declaradamente o principal suspeito, fato esse confirmado mais tarde.

No dia 24, sábado, a cidade novamente ficou em polvorosa. Havia sido efetuada a prisão do pistoleiro já na estrada que dá acesso ao Bom Jesus da Lapa. Ele saltou do ônibus e ia se dirigindo para a fazenda do grileiro Alberto Nunes, lá ficaria escondido e protegido. Surgiu boato de que na fazenda já tinha um outro pistoleiro à espera de Wilson pra executar este, queima de arquivo.

Ai começaram a surgir as evidências que levariam aos cúmplices do crime. Sabedor de que naquele sábado o juiz de direito Carlos Libório estaria em sua fazenda, o Dr. Eymar Portugal imediatamente decretou a soltura do Lico, que até os dias de hoje nunca mais foi visto pelas redondezas.

Mediante o depoimento do pistoleiro, os dois fazendeiros foram presos, e também o então delegado da cidade, cuja colaboração foi apenas e tão somente fornecer a arma do crime,"mas essa versão publicada, foi recentemente refutada em razão de ouvir novas informações de pessoas que também vivenciaram os fatos e, segundo elas, devido ao jeito pacato do Delegado Abílio, armaram pra cima dele. O Eymard Portuga, por ser o delegado Regional, portanto, era a autoridade máxima, tinha acesso livre na delegacia da cidade e poderia ter pego ou pedido a arma, o que jamais geraria suspeita por parte de um subordinado, que tal arma pedida ou pega por um superior seria utilizada em um crime e que poderia incriminá-lo em algum momento. já que a arma era de propriedade da delegacia e não do delegado, naquela época. O grande jurista Jeová de Carvalho deslocou-se de Salvador e participou do inquérito policial. Alguns dias depois, em uma noite em que houve falta de energia elétrica na cidade, provavelmente intencional, os prisioneiros fugiram da cadeia pública e nunca mais foram vistos.

Só o delegado Abílio cumpriu pena na cidade em prisão domiciliar. O Delegado Regional ganhou como prêmio uma promoção e o retorno para Salvador. Houve o pedido de prisão pelo Ministério Público más foi negado pela Justiça de Salvador.

Fato como esse já ocorreu anos depois como o assassinato do Chico Mendes, e, mais recente, a da freira Doroty. O assassinato do Dr. Eugênio foi divulgado pela rádio Globo do Rio de Janeiro e outros órgãos de imprensa. Sabemos que ainda nos dias de hoje assassinatos de anônimos ocorrem com frequência nas zonas rurais do Brasil e o fator chamado," impunidade", ainda está imperando, inclusive no setor da política.

(*)

Toda hora é breve.

A greve é só um passo

Casso sem poder ou Ciência

A violência é nada

e irrisória.

Importante é a consciência.

A História vence a escória dos chefões.

NAÇÃO,

que dragões te sufocam?

O fio é de prumo.

Certo.

Escuta:

A luta é que é o rumo.

EUGÊNIO LYRA

(*) Do livro Eugênio Lyra Presente.