A segunda queda do anjo

O ballet prosseguia no teatro quase em ruínas.

Lá embaixo, onde a orquestra se esforçava para compensar suas limitações com uma certa boa vontade, gatos e ratos corriam de um lado para outro, numa perseguição angustiante e perversa.

Mal de todos os males. Eu nunca aprendi a perder nem a lidar com tudo aquilo que é inevitável. Especialmente quando a luz uma vez ou outra, recaía sobre Nicolai e alguma coisa que o acompanhava naquele espetáculo tipico do fim dos tempos.

Cada vez mais, as certezas se afloravam, enquanto Alice lhe segurava a mão, em constante excitação.

Olho para todos os lados. Todos são tão iguais e ao mesmo tempo tão variáveis, como um erro de cálculo. E eu, ainda portador de asas e notícias desagradáveis, só poderia entender que com naturezas tão distintas, eu e e todos os alheios, jamais poderíamos ter a proximidade que desejava. Talvez fosse realmente o destino, no qual não acreditava, atuando de maneira inexorável, irrevogável e perigosa.

Desde quando, anjos podem se apaixonar? Ainda mais por criaturas de naturezas tão distinatas.

E foi alí, enquanto Odete e Sigfried percebiam a inundação iminente, que eu entendi, de fato: me tornei mais humano do que qualquer um dos quase autômatos do auditório.

Meu peito sangrava, como que transpassado por um projétil. Minhas veias, qua até então não possuía, queimavam e meu rosto até então impassível, era a expressão mais inconveniente da narcose que somente um amor ciumento pode causar.

As pessoas da platéia, com suas vestes chamuscadas, indiferentes a tudo o que sentia. E a música, talvez a pior arma inventada pelo homem, me fazendo sofrer cada vez mais. Anjos não choram. Anjos não sentem dor nem amam de verdade. Mas eu, naquele instante, naquele beijo que a luz flagou de maneira fugidia, percebi enfim qual a minha missão verdadeira: cair.

E caí tão vertiginosamente e tão dolorosamente, que até pude entender por quê os homens matam, por quê traem e por que querem sempre fugir. Amar é tão terrível e tão belo, que cega. Cega a alma.

Eis o martelo de Deus....

Quando a consciência e a compostura retornaram, percebi uma pequena fissura em minha armadura de anjo celeste e minhas asas ligeiramente assimétricas. O que é um beijo, afinal.

Terminado o espetáculo, todos deixam a sala.

Alice e Nicolai prosseguem ainda sem rumo, crendo que a vida se resumirá num fim pacífico após toda a luta e indiferença. Não será assim. O destino não suporta que seus escolhidos para herois se aquietem por muito tempo. E eu sou a maior prova disso.

E na outra extremidade da cidade em reconstrução, Mariana se prepara para sair. Meu alter-ego humanizado e enfraquecido ainda permanece no apartamente com seu braço cheio de perfuraçôes e a narcose ainda em andamento. Mal do tempo.... Uma fábula....

Em breve eu também serei pó desse mundo. Destruído pelo martelo de Deus.