1959

O novo ano chegou trazendo muitas expectativas. E com ele veio o entusiasmo para enfrentar a segunda série ginasial, etapa mais puxada do quadriênio, de acordo com os comen-tários dos alunos que por ela já haviam passado.Grande era a responsabilidade; iniciaríamos o estudo da álgebra e das línguas inglesa e latina.

Éramos então dezoito ao invés de vinte e um alunos em nossa sala de aula.Havia, porém, quarenta e oito da pri-meira série e os do curso de admissão ao ginásio, sem con-tar os do primário. Com o crescimento do colégio aumentou também o número de alunos peraltas que, de vez em quando, aprontavam suas traquinices, criando situações desagrada-veis. Coisas de crianças. Para minha intranqüilidade figu-ravam entre eles, meus irmãos, especialmente Erivaldo que fazia dupla com Aloísio Silva. Os dois, nos dias que esta-vam para desordem, bagunçavam na sala de aula, no pátio, no campo de futebol e até mesmo na rua. Sem temer a nin-guém faziam o maior estrupício quando se uniam aos traves-sos das outras duas turmas.

Eu não me sentia bem com suas travessuras e me sen-tia muito mal em ter que relatá-las aos meus pais. Era de-sagradável ter que ouvir as críticas do Diretor e profes-sores e, pior ainda, era ser mensageira entre a escola e a nossa família. Ele seria castigado e ficaria magoado comi-go. Apesar de suas estrepolias, ele era um garoto de bom coração e nos entendíamos muito bem.Mesmo sendo travessos, Erivaldo e Aloísio eram amados e protegidos por toda a tur-ma, por serem excelentes colegas.

O nível artístico e cultural dos alunos já era no-tado quer nas aulas práticas quer nas festividades.A come-moração do dia das mães foi linda. Uma sessão solene com cantos, declamação de poemas e poesias e os trabalhos saí-dos dos próprios punhos e da cachola dos estudantes, ex-pressan-do suas idéias e seus sentimentos. Para incentivá-los o Diretor Júlio Macêdo criou a premiação com autorga de medalhas de honra ao mérito para os que se destacassem.

Procurei estudar com afinco para merecer a honra-ria. O prêmio, porém, não teve o sabor esperado. Meu pai, com suas ocupações de homem público, não pôde comparecer. Foi difícil ter que dividir o meu pai com pessoas alheias à nossa família.A sensação de desamor, de abandono, de va-zio, a tristeza... foram os sentimentos experimentados por mim naquele dia festivo.

No dia vinte de junho nasceu Neurian; nossa irmã-zinha era linda. Com sua pele muito alva e os olhinhos azuis parecia uma bonequinha de louça.Eu já a esperava an-siosa, inclusive havia bordado cueiros para ela.A família inteira ficou felicíssima com sua chegada.

No final do ano, Erivaldo foi escolhido para par-ticipar de um Congresso Estudantil, em Fortaleza.Aconteceu um milagre: ele sentiu que não tinha conhecimentos a nível de uma segunda série ginasial e que necessitava recuperar o tempo perdido com brincadeiras. Já voltou trazendo, na cabeça, o planejamento de autorecuperação, e, na bagagem, os livros necessários.

O nosso povo tinha muito a aprender e a mudar. Na nossa terra o preconceito racial era grande; haja vista uma quadrinha popular que andava de boca em boca antes da entrada do ano sessenta:

“Pisa no pneu

escorrega no buraco

na era de sessenta

negro vai virar macaco”

Enquanto os brancos tinham festas dançantes, na sorveteria, ao som da orquestra; os negros tinham relabu-cho num salão do final da rua 26 de Agosto, ouvindo o to-que da sanfona de João de Maricota. Durante alguns anos esses relabuchos ou sambas estiveram sob a responsabili-dade de Maria da Luz, conhecida por “Marião de Antônio Denguinho” por ser ela a pessoa que trabalhava com nossa família.

Mesmo com as aulas de Religião, baseadas na Bí-blia, com a participação à missa dominical, nós alunos, ainda éramos capazes de fazer coro, cantando abertamente aquela quadrinha ofensiva aos nossos irmãos negros.

Crescíamos culturalmente e necessitávamos crescer também espiritualmente.