Crônicas da Esquina ( Pessoa )

PESSOA

Cabe à crônica buscar, no coloquial da língua, a maneira de imprimir aos ouvidos o ritmo, se não exato, ao menos leve e audível. Mas, exatamente nesse ponto, a terra treme sob meus pés e me acena com a primeira dificuldade. A considerar que muitas outras, ainda maiores, irão querer obstar-me a passagem, finjo a calma dos combatentes ante o perigo iminente.

Nem bem decidi-me entre a esferográfica e o Pentium, e meu personagem exige o seu quinhão. Deseja ser impresso, pois, como todos, é cronicável. Por que a minha reserva em dar-lhe tinta? Seria ele uma espécie de patinho feio a quem a mãe renega por puro preconceito genético? Seria eu essa mãe desnaturada que lhe nega calor e atenção? Meu personagem me estira o pires em busca de algumas palavras. Os olhos baços parecem puxar-me pela camisa. Essa cena, apenas imaginada, altera-me o humor. Como ao poeta, mas sem lua e conhaque, meu personagem me deixa comovido como o diabo!

Venço a resistência. Imagino-o e, ato contínuo, busco-lhe o molde ideal. Emperro. Por que subterrânea linguagem terei eu que garimpar o mote exato para que o desenho não lhe saia impróprio? Como lapidar a pedra que se deseja in natura? Nasceu para ser uma pedra que não abdica de sua inteireza. Pedra paleolítica.

Não pensem que possa ser inútil ou indesejável. Pedra lascada, meu personagem é de aurífera luz, desde que o deixe quieto. Mau-humor de fino trato, é também capaz de despojar-se da própria roupa se o frio de um amigo é maior que o seu. Se não prima pelos bons modos – sua linguagem afeta aos ouvidos mais assépticos - , prima pela sinceridade muitas vezes confundida. A ele se dirigem adjetivos muito pouco lisonjeiros, aos quais, no entanto, sequer escuta. A vida lhe é o bastante.

Meu personagem é um amigo que não gosta de preâmbulos, essa firula que fazem os que vão pedir-lhe algo sabendo que serão atendidos. Monossilábico nos advérbios e generoso nos adjetivos, meu personagem sente-se homenageado por qualquer coisa que se lhe dirija. A ele, tudo é bem vindo, desde que não chova nos finais de semana, posto que chuva e bar não combinam. Decididamente, meu personagem merece uma crônica. Quem sabe eu não a escreva, Tuninho?

Aldo Guerra

Vila Isabel, RJ.

Aldo Guerra
Enviado por Aldo Guerra em 09/09/2006
Código do texto: T236276