Doce paixão

Nem sempre paramos para pensar em alguns fatos de nossas vidas. Os que nos serviram de algum modo para construir nossa história; os que simplesmente fazem parte dela, sem muita importância; ou outros que, mesmo guardados com carinho, ficam lá, quietinhos. Na maioria das vezes precisamos de um estímulo, como um perfume ou uma música...

Lembro de uma das vezes que fui ao circo, quando criança. Fui muitas vezes ao circo com irmãos, amigos, excursão da escola. Mas uma, apenas uma, me marcou para sempre. São essas recordações de infância que todos as têm, vão juntando-se na memória e, um dia, não se sabe bem o motivo, deixam de ser somente lembranças guardadas. Passam a repovoar nossas mentes, como peças de um antigo quebra-cabeças que começa a ser remontado.

Não sei ao certo que idade tinha. Quatro cinco ou seis anos. Minha irmã mais velha me levou. Também não sei se havia mais alguém conosco. O circo era Orlando Orfei, que causara ouriço na cidade. Na escola onde estudava não se falava em outra coisa. A garotada da minha sala aguardava o fim de semana com aquela ansiedade que só criança sabe dizer como é (na verdade, não sabe).

Não posso relatar nada do que vi naquela sessão do circo, porque sinceramente não me lembro. Por que, então, tornou-se inesquecível? Pelos minutos finais da apresentação daquela tarde. O velho Orfei passa o microfone para as mãos do seu filho. Um rapaz moreno, de cabelos negros, mais ou menos longos, o suficiente para serem vistos por baixo da cartola. Era alto e muito magro. Vestia uma roupa parecida com traje de toureiro, preta, muito justa, gravata borboleta e por baixo uma camisa brilhosa. Calçava botas pretas ajustadas por fora da calça, até quase os joelhos.

Ele deveria apresentar o último número, a grande expectativa, uma novidade então. Com uma voz que nunca mais me saiu dos ouvidos e forte sotaque italiano, criou o clima para o que viria em seguida. Ao som de Êxodus, de John Blackinsell, dançava aos nossos olhos uma fonte colorida e luminosa, sob o comando do filho de Orfei. Um instante de êxtase que minha memória jamais apagou. Apaixonei-me por aquele moço. Talvez por sua beleza, por sua voz, pela música, pela sensualidade daquela fonte bailadeira.

Quando finalmente o espetáculo terminou, o velho Orfei retornou ao picadeiro e juntos, pai e filho, agradeceram ao público. Ele sorria brilhantemente, olhava para a platéia em torno, como se fitasse um a um nos olhos. Reverenciou-nos e se foi. Saí do circo entoando a melodia que fez dançar a fonte e que me acompanharia durante muito tempo, como a paixão que alimentei pelo jovem Orfei.

Ainda hoje, quando lembro da sua voz ou ouço aquela canção, como agora, não me furto a um suspiro de saudade de um moço que só vi uma única vez, por breves minutos, e que marcou minha memória por todos estes anos.

Giovana Damaceno
Enviado por Giovana Damaceno em 10/09/2006
Código do texto: T236567
Copyright © 2006. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.