DENTE DE LEITE

"Quando o homem crê verdadeiramente que pode contar com alguma força superior dentro de si, além da sua própria energia física, é capaz de sentir-se um gigante destemido".(Medo o maior inimigo- Maria Isabel de Oliveira)

Trabalhei durante cinco anos em uma clínica popular na zona leste de São Paulo. Era recém formado, inexperiente e com poucos conhecimentos técnico-científicos. Contudo, tinha o diploma de cirurgião dentista e muita vontade de trabalhar. Lembro-me ainda dos diversos problemas que tive de enfrentar pela minha inexperiência. Todavia, algumas situações inusitadas marcaram esse período. Notadamente, a prática odontológica além de conhecimentos específicos, exige uma vivência humana muito grande, considerando a proximidade profissional/paciente e por ser a boca área erógena do corpo humano. Daí a necessidade do dentista ter sensibilidade para enfrentar as diversas situações que se apresentam durante o exercício dessa nobre profissão.

Lembro-me ainda de um paciente, cujos dentes apresentavam-se em mal estado de conservação. Era um rapaz de uns 35 anos, bem apessoado, com cargo de chefia em uma fábrica da região do grande ABC. Durante o exame clínico, observei a ausência de diversos dentes permanentes. No lugar de um desses, encontrava-se o dente de leite correspondente. O dente em questão estava quase que totalmente destruído pela cárie. Indiquei sua remoção, entretanto, o paciente não concordou com o planejamento, exigindo a preservação do mesmo. O exame radiográfico tinha revelado a falta do permanente, sendo que o dente de leite apresentava uma das raízes totalmente reabsorvida e as outras com reabsorção parcial. Restaurei o dente e disse ao paciente que o tratamento era paliativo, já que elemento dental estava condenado.

Passados alguns meses, depois de terminado o tratamento dentário. O paciente retornou ao consultório, queixando-se que seu dente de leite tinha fraturado e novamente pediu para que eu fizesse alguma coisa, mas queria de qualquer maneira mantê-lo na boca. Então, disse a ele: agora não tem mais recuperação, vamos ter que retirá-lo. O paciente argumentou: não tem jeito mesmo Doutor, quer dizer que vou ter que ficar sem meu dente. Naquele momento, pensei: que coisa estranha, esse homem, já perdeu vários dentes permanentes e não deu à mínima, e agora está quase em pânico por um dente de leite.

Perguntei o porquê da insistência em manter o “moribundo”, visto que com outros dentes ele não demonstrava os mesmos cuidados. Ele baixou os olhos, depois me olhou de frente. Nesse momento, notei as lágrimas. Com a voz embargada, disse-me: sonhei que quando perdesse esse dente, morreria! Naquele momento, não tive vontade de rir, tal a angústia estampada no rosto do paciente. Contudo, o caso clínico teve um final feliz. Pois, consegui convencê-lo a submeter-se à extração dentária, com a garantia de sua sobrevivência. Posteriormente foi colocada uma prótese fixa no local, sem problemas...

Difícil entender a mente das pessoas, seus medos, paixões e esperanças. É engano pensar que a condição cultural seja determinante em todas as situações. A complexidade do Ser humano é imensa, resultando em atitudes variáveis, cujas reações são muitas vezes inusitadas. Uma pessoa culta, segura, líder em sua seção de trabalho, como o paciente em questão, constitui um exemplo paradoxal do comportamento humano. Ele nunca mais voltou em meu consultório, talvez por ter exposto pela primeira vez, a parte frágil de seu ego. Espero que aquele “dente de leite” não seja apenas a ponta visível do iceberg, e que realmente tudo tenha sido solucionado com o tratamento odontológico.

João da Cruz
Enviado por João da Cruz em 18/07/2010
Reeditado em 11/03/2012
Código do texto: T2385106
Classificação de conteúdo: seguro