Por um triz

6h05 da manhã. Ele tinha acabado de chegar da farra. Abriu o portão lentamente e em passos calculados dirigiu-se ao seu quarto. Ao menor ruído, sua mãe, seu pai, seu irmãozinho de 6 anos e sua gostosa irmã de 17 iriam acordar. Era preciso muito cuidado. Pé ante pé seguiu um longo caminho até a tão sonhada e esperada cama.

Cruzou a sala, fez a pequena curva do banheiro, atravessou o hall dos quartos e...

– Isso são horas?!

A noite não tinha sido boa. Quando chegou na festa de aniversário de seu amigo a mulher que ele tanto queria estava lá. Uma calça jeans surrada, uma correntinha cromada estava pendura no lugar do cinto e na frente fazia uma curvatura que descia até a perna. Nas orelhas uns brincos longos de cordinha e no umbigo, lábios e nariz umas bolinhas também cromadas davam um tom tribal ao ornamento. Contrastando com a cor cromada do piercing um batom vermelho lhe desenhava a boca. A blusa era colada no corpinho esbelto que desenhava a barriguinha sarada e deixava apontando um belo e rijo par de seios. Nas mãos e pés os detalhes do esmalte deixavam à mostra a delicadeza daquela escultura. Aquela figura singela, meiga e linda estava ali, na sua frente. Hesitou ao querer cumprimentá-la. O coração batia forte, suava em bicas e as pernas iriam promover um mico dantesco. Sustentou-se numa coluna e num salto longo foi à cozinha. Num só sopapo arrancou de um velho e desbotado isopor uma lata de cerveja. O barulho do anel sendo arrancado assemelhou-se a sua respiração. Num só gole, sorveu todo o liquido dourado. Com um pouco mais de calma, começou a beber outra lata. Em passos mais medidos e firmes foi para a sala juntar-se aos seus.

A música era uma mistura de funk com hip-hop e toque eletrônico. Um ritmo alegre e desconsertado, uma letra pausada e sem nexo. Era o protesto claro dos oprimidos. Aquela música, naquele momento consolava o amante tímido e mesmo a letra falando de outro tipo de amor, para ele era a declaração única de um coração apaixonado.

“... tô só observando, daqui eu vejo uma luminosidade, um tiro. Tô só observando, o véu que separa o joio do trigo...”

– Desculpe, pai. Não vai mais acontecer.

– E não vai mesmo.

Com essa frase e um sopapo certeiro ele foi arremessado dentro do quarto. Caiu na cama e a ardência no rosto lhe fizeram lembrar de uma outra conquista, na noite anterior, na casa de um amigo, com uma certa jovem linda pela qual ele era apaixonado. Foi um fiasco.

Enquanto a música rolava aproximou-se de sua amada. Respirou fundo e começou a trocar meia dúzia de palavras numa linguagem própria dos jovens que agitavam a festa. Era como se aquele dialeto fosse a língua oficial daquela turma, naquele território.

– Pô, aí, tipo assim, tu é dez.

– Pô, aí, tipo assim, tu é dez também. Tá ligado?!

– Pode crer. Vamo dá um rolé, tipo vazar daqui.

– Na boa. Vamo dá um taime. A gente curte o som, toma umas cerva e depois fica de boa.

– Só. Tô ligado.

Era o diálogo mais complicado que eu já tinha ouvido. Mesmo não entendendo muito daquela comunicação do gueto das cidades modernas pude deduzir que se tratava de uma cantada no estilo moderno de se viver. No meu tempo de “inferninhos” (para você que é mais moço, inferninho era como a gente chamava os lugares badalados de minha época, na década de 80), a gente chegava junto do broto e jogava umas palavras mais ou menos assim:

– Ai. Dança uma lenta?!

– Danço. Já vai rolar?

– Agora! O broder da cabina já vai tocar.

Enquanto o Jimmi Cliff embalava os nossos copos colados, ao som de “rebel in me”, a gente, ao pé do ouvido, ganhava o coração da pequena. Daí para o namoro (não tinha o ficar como hoje. Ou você namorava ou dava uns agarros) era um pulo.

Nosso apaixonado conseguiu o seu intento. Na sua forma de conquistar, e depois de algumas horas e uns goles consideráveis de cerveja, saíram do lugar e foram ficar “de boa”.

Aquela pequena era o seu sonho de mulher. A sua conquista mais completa. Agora ele estava ali prestes a realizar o seu sonho de meses. Transar com a “mina” mais cobiçada das baladas era um troféu e tanto. Todos os caras queriam possuí-la. Na sua indiferença com os demais, depositou no jovem conquistador uma esperança. Ele tinha uma chance e nada poderia dar errado. Qualquer vacilo e a luta de meses na conquista iria para o espaço. Era o seu dia, a sua hora, a sua chance.

Deitados no banco de trás do carro, um opala 85, rebaixado e com rodas de liga leve, os dois deram inicio ao rompante amoroso. Se amassavam, se beijavam. As línguas se abalroavam nos céus de suas bocas. As mãos se entrelaçavam e percorriam os corpos de forma desordenada e conseguiam chegar aos cantos mais escondidos. E que cantos.

De repetente, num acesso de sei lá o quê, ele começou a se tremer. O suor lhe escorrida do rosto. Começou a se contorcer, segurava a barriga e encolhia as pernas. A boca estava trêmula, a voz era engasgada e os movimentos pareciam querer lhe afastar da amada. Quem estava de fora e não sabia o que se passava jurava que o jovem estivesse tendo um ataque de epilepsia ou estivesse movido pôr alucinógenos.

Saiu correndo e a menos de 10 metros não aguentou. Olhou a sua volta e avistou um arbusto. Agachou ali mesmo e num suspiro aliviado soltou os venenos que o atemorizavam. Deixou que o mais íntimo de suas entranhas vazasse um líquido fedido, pálido e constante. Uma diarreia descomunal que lhe sujou a roupa, as pernas e a bunda. Misturando alívio com vergonha voltou para o carro. A deusa o aguardava impaciente.

– O quê que foi?

– Caracas! Foi mal.

– Tá doente?

– Não. De boa. Tô legal. Vamo continuar.

Torcendo o nariz naquele gesto típico de quem sente mal cheiro ela se afastou dali.

– Que fedor! Tu tá todo sujo de merda.

– Foi mal.

– Foi mal?! Foi péssimo. Fala sério! Ninguém merece!

Saiu de sua presença deixando-o com sua frustração e sua deplorável situação. Ela voltou para a festa. Eram quase 5h30 da madrugada e ele então rumou para casa. Despiu-se para não sujar o possante e dirigindo de lado, com todos os vidros abertos chegou em casa. Com o seu tesão sufocando-lhe a alma, fazer um barulho seria arriscado. Além de chegar no dia seguinte, não ter conseguido o seu objetivo, acordar os familiares seria uma punição maior. Todos iriam dar broncas e a zoeira seria impagável.

VALBER DINIZ
Enviado por VALBER DINIZ em 19/07/2010
Reeditado em 12/05/2011
Código do texto: T2386642
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