JOÃO DA CRUZ E AIDS

"Quem ensinou tudo isto ao senhor, doutor?

A resposta veio prontamente:

O sofrimento." (Albert Camus: A peste)

Os primeiros casos de AIDS descritos na literatura foram no EUA em 1981. Como não se sabia a causa dessa epidemia, muito se especulava sobre sua origem. Em razão dos primeiros casos ter ocorrido em homossexuais, ficou estigmatizada por muitos, como castigo de Deus, sendo denominada por eles de “peste gay”. Depois, verificou-se que essa doença não era exclusiva de homossexuais, por ela também tem sido observada em usuários de droga, hemofílicos e crianças. Enfim, era uma doença que não discriminava ninguém, todos estavam sujeitos a desenvolver esse mal. Nesse ínterim, descobriu-se a causa dessa morbidade, um vírus que destruía o sistema imunológico dos doentes, chamado de Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV).

Meu primeiro contacto profissional com essa doença foi em 1984, nessa época, ainda pouco se sabia sobre essa entidade mórbida. Eu trabalhava no hospital público da minha cidade. Quando o médico infectologista local disse-me que havia diversos pacientes internados no setor de doenças infecciosas (MI) com AIDS. A maioria deles com problemas bucais. O referido médico solicitou-me auxílio no atendimento desses pacientes. Disse ele: “caso você não queira ir, tudo bem, existe risco de contágio profissional e acidentes acontecem”. Continuou ele a falar: “As informações sobre a doença estão contidas nesse boletim do ministério da saúde”. E entregou-me umas poucas folhas grampeadas.

Confesso que tive medo, mas de antemão, sabia que iria enfrentar essa empreitada. As razões que me levaram a tomar a decisão de iniciar o atendimento foi o compromisso ético profissional. Lembrei também, de minha primeira filha, criança ainda. Pensei: daqui a 20 anos, quando essa epidemia passar, e ela vir a me perguntar: “Papai qual foi a sua contribuição no enfrentamento da AIDS”? Se isso acontecer, não quero deixá-la frustrada. Não tive dúvidas, passei no posto bancário do hospital, aumentei meu seguro de vida e subi para o MI. Confesso que um pouco trêmulo no início. Posteriormente, tornou-se uma rotina para mim. A propósito, até então, eu sentia que não passava de um cirurgião dentista medíocre. A partir daquele momento, minha vida profissional modificou-se por completo, passando a ter um sentido maior.

Inúmeras situações eu vivenciei no trato desses pacientes. Fui rotulado de “dentista dos aidéticos” e isso não me abalou. Alguns colegas da cidade encaminhavam-me seus casos, dizendo não ter condições técnico-profissionais para atendê-los. Não os recrimino, pois, não é fácil lidar de perto com uma pessoa portadora de uma doença contagiosa. Por outro lado, foi muito importante, a gratidão demonstrada pelos pacientes pelos meus serviços, e principalmente a sensação do dever cumprido.

Lembro-me de um paciente que marcou bastante. Era um conhecido comunicador de televisão e precisou de meus serviços. Ele sofria de AIDS e apresentava diversos problemas odontológicos. Durante o tratamento, conversávamos muito. Uma vez, ele me disse: “minha mãe todos os dias reza prá você e para o meu médico”. Muito obrigado, eu disse. Continuou ele: “minha irmã e meu cunhado são cirurgiões dentistas, mas se recusaram a me atender. Você não me conhecia antes e agora tem cuidado de mim”...

Atualmente, os pacientes HIV são tratados pela maioria dos cirurgiões dentistas, mas nem sempre foi assim. Todavia, como eu, outros profissionais da área, têm-se dedicado desde o início a essa nobre causa. Por outro lado, as preces de meus pacientes foram atendidas. Pois, pela participação de um evento sobre AIDS, surgiu o convite para lecionar na Universidade local, onde trabalho até hoje. Como vê caro leitor(a), sou “bom mocinho”. Entretanto, possuo muitas limitações e não tenho a pretensão de ser santo. Por falar em defeitos, tenho dificuldades em ficar em silêncio e tenho uma grande necessidade de ser aceito. Talvez um dia, eu fique livre de toda essa carga e possa realmente cantar a vitória.

João da Cruz
Enviado por João da Cruz em 19/07/2010
Reeditado em 11/08/2012
Código do texto: T2387828
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