Inconfundível

Inconfundível

(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.

No berçário da maternidade o molequinho assedia a garotinha: Puxa conversa.

Menininho.

- Oi, gatinha! Não me lembro de ter visto você antes de hoje por aqui?

Menininha.

- Realmente. É a minha primeira vez. Na verdade, acabei de chegar.

Menininho.

- Que legal! Eu também acabei de ser colocado aqui! E continua: – Eu sou um menino!

Menininha.

- Como sabe?

Menininho.

- Espera a enfermeira virar as costas que eu lhe mostro.

Cinco minutos depois a enfermeira deixa a sala e se afasta silenciosamente. A garotinha ataca:

Menininha.

- Pronto, ela saiu.

Menininho.

- Quietinha. Ela vai voltar. Esqueceu de acender a luz.

Menininha.

- É mesmo. Não havia percebido esse detalhe...

Realmente a enfermeira retorna e acende uma espécie de abajur especial que invade o ambiente de forma suave, deixando a sala quase em penumbra.

Menininha.

- Então, ela se foi.

Menininho.

- Calma. Você é bem apressadinha.

Menininha.

- Nem tanto. Levei nove meses para nascer.

Menininho.

- Eu também...

Menininha.

- Quem falou?

Menininho.

- Um homem alto, de branco.

Menininha.

- Ele usava uma máscara no rosto?

Menininho.

- Usava. E tinha um bigode engraçado...

Menininha.

-... E também carregava um negocio esquisito em volta do pescoço que de vez em quando colocava nos ouvidos?

Menininho.

-Sim. Aquele é o doutor pediatra. Aquilo que ele usa se chama estetoscópio. Serve para ouvir o coração.

Menininha.

- Você é bem sabido para um piá na sua idade.

Menininho.

-Gosto de observar as coisas.

Menininha.

- Está gostando daqui?

Menininho.

- Não, tudo muito parado. E você?

Menininha.

- Achava melhor o lugar de onde eu vim. Era mais quentinho. Lembro que ficava toda encolhidinha, às vezes dava uns chutes. Ai ouvia a voz de mamãe, depois de papai... Aqui, além de frio, é meio triste!

Menininho.

- Concordo. Pra falar a verdade estou cansado de ficar olhando para o teto.

Menininha.

- Eu idem. Olha, você está me enrolando. A enfermeira deu no pé faz um bom tempo. Não vai retornar tão cedo. Agora me conta: como sabe que é homem?

Menininho.

- “Jo lo se!...”.

Menininha.

- Quer deixar de ser exibido? Fale português claro. Além de tudo ainda pronunciou as palavras de forma errada. Não se diz “jo...

Menininho, interrompendo bruscamente:

- ...Ta, foi mal!

Menininha.

- Pois então: como sabe seu sexo? Você disse que ia me mostrar. Deixa de papo furado e vamos direto ao assunto.

Menininho.

- Mocinha intransigente, você. Mas, ta ai: gostei do seu jeito... Vamos nos dar bem.

Menininha.

- Ande logo.

O pequeno levanta um pouco a coberta e cochicha:

Menininho.

- Olha aqui.

Menininha.

- Onde?

Menininho.

- Aqui.

Menininha.

- Estou olhando, mas não estou vendo nada!

Menininho.

- Como não está vendo nada? O troço está visível!

Menininha.

- Ué, pode até estar, mas eu não estou vendo mesmo.

Menininho.

- Levanta um pouco a cabeça.

Menininha.

- Pronto!

Menininho.

- Viu?

Menininha.

- Não. Afinal, o que é que tem ai?

Menininho.

- Estica o pescoço, criatura. Parece que nasceu cansada! Olha o tamanho...

Menininha.

- Deixa de ser bobão. Já estiquei o pescoço e realmente não vi nem estou vendo porcaria nenhuma. Tamanho! Tamanho de quê?

Menininho.

- Não é possível. Vira um pouco de lado.

Menininha.

- Assim?

Menininho.

- É. Conseguiu?

Menininha.

- Ah, agora deu pra perceber...

Menininho.

- Legal. Diga então o que você realmente viu dai?

Menininha.

- Nossa! Preciso fazer isso?

Menininho.

- O que você acha? Fala logo. Acho que você está mentindo. Não viu coisíssima nenhuma. Ou se viu está com vergonha...

Menininha.

- Vi sim. E não estou com vergonha de nada. Seu moleque idiota!

Menininho.

- Você chegou onde eu imaginava. É como havia previsto: você não viu porcaria nenhuma.

Menininha.

- Vi. Eu vi. E não me chame de mentirosa.

Menininho.

- Você me xingou primeiro. Disse que sou idiota.

Menininha.

- Ta desculpe.

Menininho.

- Está desculpada. Agora para me deixar bem alegre e levantar meu astral, desembucha. Diz ai, minha linda, o que foi que você viu?

Antes de responder a mocinha se abre num sorriso encantador:

Menininha.

- Seu sapatinho. É preto!

(*) Aparecido Raimundo de Souza, 57 anos é jornalista.

Contato:

aparecidoraimundodesouza@gmail.com

Aparecidoescritor
Enviado por Aparecidoescritor em 21/07/2010
Código do texto: T2390535