Coisas da Vida.

Aquela foi a primeira vez em que saí dos trilhos. Literalmente, abandonei meu espírito, se é que algum dia ele me freqüentou, e joguei minha carcaça no solo.

Quantas e quantas noites passei em claro, diante das chamas do inferno, ao som dos martelos do demônio.

Cruel! Por um bom tempo deixei de existir, estando acabado.

Faminto, pedi um lanche ao defrontar-me com o tinhoso. Por tudo, minha ânsia era exclusiva pela comida, queria comida, acima de tudo. Minha barriga trovejava de fome, quando me dei conta que tinha cinco contos no bolso da bermuda. Quando saquei a grana, todos riram sarcasticamente.

Estava paranóico, porém algo me instigava. Queria correr dali, para algum lugar, qualquer que fosse, que ao menos me livrasse do “inferno” em que supunha estar. Até então não tinha noção do que era o inferno. Algo horrível ou coisa parecida. Mas meus momentos ruins poderiam ser considerados estâncias do inferno? Foi aí que percebi a relatividade das coisas, do sofrimento, da dor e da felicidade. Nem sempre minha angústia se consistia na angústia alheia, e vice-versa.

Com o passar dos tempos, ao modo do mestre Blake, mortos sucumbiam diante meus pés. Coisas da vida, substâncias da Natureza (Deus sive Natura), como o disse o grande Baruch (Benedictus) Spinosa.

A imutabilidade do passado; o presente vivo, pulsante; um futuro hipotético, com a única certeza, a da morte. Aliás, como bem o disse um dia um filósofo que no momento não me recordo o nome, a vida é uma doença sexualmente transmissível com cem por cento de taxa de mortalidade. E ainda por cima, para agravar tudo, saímos devendo.

Devo tudo! Até meus sonhos comprei a prestação na bocada da esquina suja da Vila dos Prazeres, nos arrebaldes da Lapa. Agora, no entanto, tenho apenas a carne para oferecer aos usurários. Recusada veementemente. Querem mais, querem a alma.

Minha natureza é composta de febre, insônia e delírio. Vivo sob espasmos de luz e sombra. Minha matéria é o nada. O lapso do aqui e agora me compõe. Um sopro na eternidade.

Por não ser nada, nada desejo, nada praguejo, não amo nada, não clamo ao além a salvação, não chamo a ilusão, não consumo o breve insumo que intitulam existência.

Retorcido e persistindo, feito maquinismos inanimados, à base de óleo e propulsão motora; incompreensível e de alguma forma existindo, como um inseto insignificante...

07.12.06.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 23/07/2010
Reeditado em 28/05/2014
Código do texto: T2394486
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