Irreversível

Avistando-lhe, o velho, seco de fome em pele marcada pelo osso, gemendo de dor, enlouquecendo aos poucos pela terrível visão que por sua cabeça passara, alucinado com os olhos marcados pelo delírio desgraçado que lhe acontecera, tentou-se às naturais buscas do instinto esfomeado. A velha, inválida e doente, jogada aos cantos do minúsculo e imundo quarto, amarelada e pálida, e seus enormes cabelos brancos, secos e quebrados, já não sentira há horas mais a fome que lhe atormentava, anestesiada pela causa do sofrimento como defesa natural de um corpo prester a morrer.

Não poderia deixar de acontecer, manipulado por uma vontade indesejável, o velho, nem mais chorava, pois de líquido no seu corpo acabado nada mais restara, e de carne só o seu coração murcho bombeando o pouco sangue incolor que ali havia; e, quando fez os seus olhos enrugados piscarem, viu num segundo de escuridão uma eternidade. Dirigido pela natural sobrevivência guiada pela insanidade, mastigou-a a carne em movimentos bruscos e desesperados. Engasgava-se agonizante com a carne podre da velha, já naturalmente despedaçada mesmo quando viva, e vomitava-as de volta para novamente engolir. Ao terminar o brutal jantar, tornou-se uma breve consciência, não mais que um segundo, e repudiou-se com nojo se debatendo aos gritos nas paredes. Foi esfaqueado pelo triste ato sem mais volta arrependido e faltou-lhe o ar.

Uma ânsia foi o bastante para vomitar-lhe a vida.

Calor do cão
Enviado por Calor do cão em 13/09/2006
Reeditado em 07/10/2006
Código do texto: T239655