Sinceramente começo a ficar cansada de caminhar toda a santa semana para o centro da cidade para me sentar na poltrona confortável do doutor. É uma bela peça de mobiliário e está-se lá bastante bem. Agradável ambiente, musiquinha suave que relaxa, conversa ligeira. Sim, a conversa é desprendida. Nada de muito profundo. De outro modo já teria desistido à mais tempo. Agora, vir tentar convencer-me de que estou cheia de ódio por dentro...é preciso topete! Topete, lata, coragem, o que queiras minha amiga. Simplesmente não aceito. Pode ser médico, psiquiatra, doutorado, jubilado, o raio que o parta, mas não me entra. Não me deixo assim lubridiar tão facilmente. Qual Freud qual quê! Ódio eu? Porque carga de água? De quem e para quê? Nunca na vida. Não sei do que é que ele fala. Sou pacífica, minha amiga, uma autêntica pomba da paz...
Não faço ideia de onde ele foi desencantar ideia mais esdrúxula. Deve ser coisa de médico semi-lunático, sei lá. Coisas que eles inventam para se armarem ao pingarelho. Não tenho nada contra ninguém, já disse. Ressentimentos de infância? O que é isso? Fui bem criada, tive de tudo do bom e do melhor, querida, ressentimentos de quê?
Claro que lhe perguntei o que queria dizer quando me atira à cara que eu estou com algo encalhado cá dentro de mim. Ideia estapafúrdia. Eu sou solta que nem...que nem...um passarinho no vento... Sim, confesso que as metáforas não são o meu forte. Cada um é p’ró que nasce.
Confundes assertividade com cólera, fofa. Eu digo o que tem de ser dito a bem dos ouvintes. As pessoas precisam saber a verdade. E sendo eu amiga do seu amigo tenho mesmo a obrigação de fazer alguns reparos. Falta de coração? Qual falta de coração? Tenho um como toda a gente. Não sou é lamechas e pindérica. Qual raiva? Isto não é raiva. Tédio? O que é isso? Isso é estupidez de quem não sabe estar. Se não tenho nada para fazer pois nada faço. Qual é o problema? Nunca tive qualquer dissabor por estar quieta no meu canto. Saber não fazer nada é uma arte.
Quem? Queixou-se de mim? Eu disse coisas horríveis? Não me lembro. Juro que não sei do que fala. Está a inventar. Estava bêbado e fez confusão. Porque carga de água o havia de odiar? Inveja de quê? Daquele tom de pele esverdeado que grita cirrose pelos quatro cantos do mundo, em sete idiomas diferentes? Não estou a dizer mal, amiga. É que a mim não me engana ele. Pára de dizer que estou cheia de ódio, mas agora tens uma procuração do charlatão do meu médico? Chiça! Não me largam a cueca, porra de merda esta! Deixem-me me paz!
Desligou-me o telefone. Puta!
AnaMarques
Enviado por AnaMarques em 26/07/2010
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