Crônicas do Rio VI

Pérolas aos Ratos (do Beco)

- “Já estava escrito: outras espécies surgirão da rua a qualquer momento, criaturas subterrâneas reinventarão a noite da Lapa, hoje dominada pelos bares chiques, casas noturnas, shows a preços impagáveis e restaurants freqüentados pelas finas madamas!”

Uma moça maltrapilha se aproximou de mim e deu essa sentença acima. Proferiu assim, num sussurro, ao pé do meu ouvido, fazendo com que minha cerveja se tornasse poça no chão. Ela fedia um bocado; tinha olhos verdes e sorriso lindo – bradava dessas frases que, entre a loucura e a lógica, nos fazem encucar. Entre a Estamira e o Chico Buarque, pensei. Pensei e ri. Veio música na cabeça, vieram encucações aos montes. Sentei-me na sarjeta e, taciturna, enchi novo copo. A moça foi-se. Ficaram ruídos. Ruir, roer, rir...

Redefinir...

Além do Houaiss, há uma definição dialectológica do carioca, para o qual rato é aquela pessoa que possui a destreza e habilidade necessária para deslizar pelo estreito espaço de vielas e becos. No caso particular dos ratos citadinos, que somam a maioria da espécie, sobretudo os Rattus rattus, têm a característica de se adaptar facilmente à arquitetura urbana, seja aos grandes edifícios e monumentos, seja aos casarões assobradados e cortiços, o que propicia a rápida dispersão e expansão de sua espécie.

Tal como seu homônimo bicho, irracional, desapegado, vadio, o sujeito rato – bicho homem; bicho-de-sete-cabeças mulher - costuma cortar a noite veloz à procura de uma aventura fugaz, caçando apetitosos petiscos e um bangalô acolhedor, no parâmetro de seus costumes.

Rato mesmo não pensa no futuro, vive o hoje e nem quer saber das contingências. Por isso, escolhe a noite. Efêmera, hedonista e torta, como a verdade do seu existir. Seu cenário ideal - ambiente onde tende a sentir-se despojado e acolhido - é de uma atmosfera lúgubre. Ele foge da luz o quanto pode; sua natureza o desautoriza a um passeio diurno entre os pedestres apressados e produtivos.

Os ratos verdadeiros não têm pressa. Espreitam, suspeitam e divertem-se com o fato dos outros estranharem seus hábitos notívagos. Os ratos aos quais me refiro são indivíduos resingularizados e estão sempre em busca de recantos propícios à sua sociabilização.

Daí, cheguei no mesmo ponto onde me encontrara. Naquela sarjeta imaginando que os ratos cariocas, felizmente, contamos com o cantinho profícuo às nossas indispensáveis incursões boêmias. Não fui a primeira a ir, nem última a vir. Um outro moço deu muita bandeira sobre suas predileções, seu “roer de sereno”. Um tal Manoel. Um tal poeta chamado Manuel.

Fora ali, na esquina da Joaquim Silva com Augusto Severo, e não nas outras tantas encruzilhadas da Lapa, que o “Poema do Beco” foi proferido, e, enfim, existido. Era noite, como até hoje noites são, e junto do poeta Manuel se encontravam João Madeira, violonista clássico (tio de Tom Jobim) e um escritor baiano de nome sedutor: Jorge Amado. Naquele tempo, anos 30, necessário não era, mas todos portavam ali suas armas: papel, papéis, palheta, tinta, cordas, bojo, coração, corações...Combatiam as proezas de Vargas com língua e egos inflados. A conversa era animada; e até barulhenta demais pra tempos tão bizarros.

A narrativa, se aqui empaca, é apenas pra contar ao leitor - esse que me desacredita - que a testemunha disso tudo foi o próprio João Madeira. Quem desconfiar que pergunte pra família Brasileiro de Almeida, pros Jobim, ou mesmo pros Eugênio...

O poeta Manuel se retirara para o banheiro e, simultaneamente, chegava à mesa Heitor Villa Lobos; amigo de todos dali, inclusive, de Vargas. O papo, todavia, não se esvaiu do presidente.

Com o retorno de Manuel, houve uma efusiva troca de abraços, beijos, ditos e reditos; não cumpriam dois dias que, desde que vindo da casa de Heitor, um jantar seguido de sarau, o poeta Manuel vivia emocionado com a seresta “O Anjo da Guarda”. Bonita. Tão bonita que, palavra de poeta, “parecia uma tarde que não acaba mais”. Era então aquele um novo elo entre os dois artistas.

Foi ao final daqueles afagos entre amigos que o tema sobre Vargas ganhou vulto de discussão, de bate boca. Amado atacava Villa-Lobos. Madeira tentava contemporizar aumentando mais ainda a voz. Quase briga, para quem visse de fora. Guerra retórica, socos na mesa.

Rato, ruir, ruído de rir...

Eis que o poeta Manuel se levanta e rir-se. Gargalha longa e demoradamente. Os companheiros de mesa vão se calando, entre putos e curiosos. É Jorge Amado que vai de encontro: - Volte pra cá, homem! Há mais do que lirismo ou canções pra gente se debater!

Manuel, no alto de sua vida já previsível de fim – sua vida, um caminho sempre previsível de breve fim –, secou o riso, tocou no ombro de Heitor e, olhando pra seu copo de cachaça mineira (Rainha do Mundo), proferiu os versos poucos, esses tão famosos daquele cotoco de rua. Era sobre a cegueira de “feliz-ser” que a música de Heitor lhe dava liberdade. Poema do Beco do Rato rebentava.

E é aqui onde nos separamos. Manuel, o poeta, e eu, a jornalista. Ele, bem acompanhado, vê tudo e tanto, que vê o beco. Daqui de 2006, sob a égide da profecia da maltrapilha de olhos lindos, deixo a noite cair e só vejo, quando não muito vagarosos passam, só vejo ratos.

Ruindo, roendo, rindo.

Jan Morais
Enviado por Jan Morais em 14/09/2006
Código do texto: T240081