FUGAS PROVISÓRIAS

O eterno não me fascina. Na verdade, me assusta apenas, me apavora toda possibilidade que envolve essa palavra. Sou visceralmente feito de fugas. Mora em mim (mesmo sendo contraditório o verbo morar) uma necessidade de escape. Uma necessidade como a de pão e de água. Uma necessidade tirana. Uma necessidade que me dopa, me arroja, me convence.

A fuga é para mim uma espécie de missão, de tarefa a ser cumprida. É ela que me permite conhecer e desconhecer, ter entre as mãos e assistir, pálido, algo se soltar para sempre, ir, sumir. Não imito os passos do assassino, que escapa sem olhar, sem se situar, querendo se vestir de outra pele. Não imito a fuga do ladrão, que esvazia muito de si para caminhar mais leve. Minha fuga percorre a trilha aberta pela poesia. A minha fuga não reivindica nenhuma glória, nenhuma coroa. É uma fuga sem medalhas, sem canções em louvor. Pode ser entendida apenas, não mais que isso desejo, como os passos de um homem em direção de si mesmo.

Não há muita magia quando planejo a próxima partida. Sem cerimônias, sem liturgias, sem lenços brancos estendidos. Dispenso a mão que acena. Dispenso o abraço que me faz reconsiderar. Não me seduz ensaiar a última dança, lavar o último prato. É mais honesto quando a porta fechada a uma possibilidade não exige mais do que a mais breve das explicações. A mais sutil das explicações, a mais política das explicações.

Sou um Abraão eternamente saindo de sua parentela, sempre deixando Ur para trás. Ur e sua pequenez. Ur e suas doutrinas. Ur e sua jogatina. Ur e sua falta de possibilidades. Sou um Abraão, com o coração quebrantado diante de um Deus que entende minhas indecisões e me oferece uma terra que mana leite, mel e outros banquetes. Principalmente outros banquetes.

Às vezes, sem ser preciso que a terra faça completos trabalhos de rotação, transformo-me em um urso polar, que cansado de colher mel silvestre, sonha apenas com sua quente e disponível caverna. Sou um urso que decreta inverno em qualquer estação se assim o desejar. Sou um urso que, por momentos, dorme e sonha apenas com outros invernos. Às vezes sou um urso que foge da possibilidade da primavera.

A canção do exílio nem sempre me apavora. Minha pátria é o meu coração do momento. Meu coração e suas estações, suas cores, suas leis. Consigo ser feliz no exílio. Não ter um nome a ser chamado, não ser um número que pertença a alguma agenda, não ter qualquer ficha a ser pesquisada, não ter um rosto a ser lembrado, não ter uma história a ser contada: eis o chão do país estranho que às vezes quero pisar.

Mas nem sempre sou a fuga, sem sempre sou o abraço de despedida ou a justificativa. Às vezes também sou a fuga de tudo isso, sou a calma do braço pousado sobre uma idéia, o olhar que mendiga um laço, o beijo que deseja aprisionar. Também há o plano de fuga, desfeito, em pedaços, amputado, sem qualquer chance de ser repatriado.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 29/07/2010
Reeditado em 09/08/2010
Código do texto: T2407105