O Eu e a Metade Negra.

Talvez seja falta de serotonina no corpo.

Há quanto tempo você não puxa ferro?

Há uns dois ou três dias. Mas hoje joguei uma partida de futebol com os caras, a partida dos caras pernas de pau.

Então teve sim serotonina no seu corpo hoje!

Por que tanto resmungo?

Sei lá, cara, uma angústia desesperada, uma ânsia de não sei o que, sabe?!

Sei sim, cara, conheço esse tipo de situação, já passei por isso. Não querendo diagnosticar ou dar conselhos idiotas, mas acho que você precisa se matar! Dê um bom fim a essa sua pútrida existência, que você vai ver o que é bom pra tosse! Vai, cara, se você não está gostando da maneira como atualmente vive, dê um ponto final nisso, recomece de algum modo diferente, entende?!

Aniquile tudo o que foste ate então! Dê um basta na bosta que te atormenta! O que são míseros vinte e oito anos?

Para isso só te peço uma coisa, companheiro seu que sou, não vá sair por aí metendo os pés pelas mãos feito louco, e deixar que um pedacinho seu podre destrua todo o resto de tua vida!

Você sabe que tudo na vida é passageiro, não sabe?! Ou você pensa que é o santinho privilegiado?

Cara, pra te falar a verdade, atualmente só sei que minha vida descambou para um mundo para um mundo que não é o que quero. E esse mundo anda querendo tirar o que eu tinha de bom num outro mundo anterior, se é que me entende. E que era bom para mim e para os que me circundavam.

Realmente, pensando dessa forma, preciso mesmo me matar, ou ao menos matar minha “metade negra”.

Minha “vida boa” equipara-se àquela do personagem de Nicolas Cage em “Red Rock West”, lembra?! Um errante cultuador do que é saudável no existencialismo, o bom do existencialismo. Mas, não sei o que acontece, ando dando uma de burrão, um imbecil presa fácil. Ando por aí tragando essa fumaça miserável em ingerindo veneno como se fosse a cura de todos os males. Que trouxa tenho sido! Transpiro à noite toda como se fosse um porco velho; brigo com o travesseiro batalhas campestres intermináveis; perco o apetite pela existência brutal que outrora tanto admiti e admirei... Agora, por exemplo, uma sede incontrolável, mesclada com a fraqueza dos diabos, invade minha insônia. Um medo de não sei o que... Meu testículo direito dói, e minha testa não para de gotejar... Fome, sede, insônia, e o Raul Seixas a azucrinar minhas idéias... Nunca quis ser produto de sistema algum. O fantoche que os caras anseiam. O bonequinho que come carne irmã e suga o sangue do próximo, nunca! Muito pelo contrário, desde meus vinte e um anos, quando adentrei de alma e corpo no universo, não imaginava jamais que um dia passaria por esse tipo de situação... Lógico, amanhã é outro dia, um dia que nunca existiu e aberto a todas as possibilidades, e só não quero estar fraco.

Mas, cara, agora percebo esse suador que percorre tua face angustiada.

Não tô te falando, seu filho da vaca!, não tô te falando?!. Preciso mesmo queimar-me para reerguer-me! Quando dou esses esbarrões em minha própria consciência, tenho a sensação de que dois opostos se digladiam mortalmente pelo poder aqui dentro de mim. É macabro! Enquanto isso meu “eu” verdadeiro fica no camarote assistindo tudo, como uma criança iludida. Os dois de dentro se mataram! O problema é que quem sai prejudicado no fim das contas é o pobre do “eu” verdadeiro, a carne, o crânio, o cerne, os atos, omissos...

Cara, continuo achando seriamente que você deve se matar o mais depressa possível, agora, se puder, e quiser! E sabe de outra, acho também que você, bem lá no fundinho de tudo, vem gostando mesmo de ser assim, um “estranho no ninho”. Se gosta, cara, foda-se então! Não me venha com ladainhas de ébrio habitual. Lavo minhas mãos. Agora, se quiser salvação, é só começar a agir, no que quer que seja, aja sempre, dia e noite, aja de qualquer forma, mesmo que esteja com dores horrendas, aja! Arrebente o corpo, mas deixe a alma sã! É o que importa, a alma sã e a cabeça pronta a executar os mais complexos sacrifícios aritméticos, sob quaisquer circunstâncias e a qualquer hora do dia ou da noite!

Calma, cara, não precisa berrar! Ainda ouço bem! O povo aí do lado ta de butuca no que a gente, ou melhor, você, anda berrando! Parece coisa de neurótico.

Neurótico é você, que me chama pra encher o bico nesta joça, e no entanto fica aí, confessando idiotices de sua cabeça doente!

Não, acho até que estou melhor que você, com esse nariz que não para de escorrer!

Caralho, se é o lixo do teu nariz que anda te atormentando, então porque não arranca ele fora?! Ou vai continuar desse jeito por causa de uma merda de nariz?! Olha cara, chega, não quero mais falar dessas abobrinhas! Vamos mudar de assunto!

Mas, que assunto? Será que assunto enche o bolso de alguém que não seja jornalista?

Não, dinheiro não, não me venha falar que está com problema de dinheiro!

Dinheiro e tudo mais. Tenho a impressão que não estou sendo útil para porcaria nenhuma na vida! É um inferno isso!

Dizem por aí que esse lance de signos, astros, coisas assim, influem na vida e no comportamento do sujeito. Por que você não procura por esse lado?

Não acredito nesse tipo de coisa! Acho tudo enganação. Meu problema, creio eu, é que tenho pensado de mais e feito de menos. Esta noite, por exemplo, já estou até vendo...

Vendo o que, doido?

Imagine-se deitado numa cama quente com o corvo a bicar-lhe a testa incessantemente. Imagine! É mais ou menos o que sinto quando me deito na cama. Nada me satisfaz. E a vontade única é despedaçar o maldito corvo e cair de cara num macio morro de neve! Só tenho indagações, e as respostas saem às pressas quando me aproximo delas. Lembro-me daquela estrada de terra, deserta, de meus mais belos sonhos, e quase choro de nostalgia. Um sonho simples demais! Lembro-me de tantas coisas boas que já pensei e sonhei, que chego a sentir nauseias da vida vivida. Parafraseando o inverso, se é assim que se emprega o termo, um poeta qualquer: “sonhar é melhor que viver”. Mas não durmo, e quando durmo quero logo acordar, fugir dos pesadelos. Ergo-me sôfrego, morno, úmido e nausaebundo, querendo chorar. É quando percebo que lágrimas não há mais. Acho até que dia desses vou gravar umas conversas minhas e enviar anonimamente a um psiquiatra, ou psicólogo, se lá, esperando respostas, esperando respostas...

Ah, meu amigo, pode ter a certeza de que antes de qualquer resposta virá primeiro o boleto da conta pra pagar no banco.

Mas não custa tentar. E o curioso é que hoje em dia tenho uma liberdade nunca antes vivida.

Então, mais uma conjetura, o problema pode estar justamente aí, no excesso de liberdade! Você se tornou um libertino filho da mãe!

Hoje à tarde, naquele campo de futebol esburacado, com o crepúsculo a acariciar minhas idéias, tive a impressão de que estava em paz, no caminho certo; mas foi só um curto instante, pois logo caí novamente num poço de amarguras. Não gosto que homens e velhos olhem em minha direção! Penso que estão me espancando em pensamentos. Penso que, dentro de suas cabeças, fazem de mim o que quiserem, de gato e sapato, chutando-me o traseiro. O que talvez possa ser até o contrário disso, vai saber. Outra coisa que me estraga é essa maldita sexualidade exacerbada, não conseguindo me desgarrar de pensamentos eróticos. Vira e mexe uma boazuda nua entra sem licença em meu pensamentos, clamando para que eu a chupe todinha. Fico louco! E quando dou por mim estou dentro de uma sala de audiências, com o juiz a perscrutar-me as entranhas, para roê-las.

Cara, você é doido mesmo! Que isso, meu?! Seu caso é clínico!

É assim sim! Em muitas ocasiões sou acometido por idéias delirantes de sexo selvagem. É uma tortura! Quero extirpá-las de minha mente, mas a boazuda insiste em me dar o rabo, projetando o dedinho nas partes íntimas e incitando-me a fodê-la impiedosamente.

E quando é assim, quando fica insuportável, o que você faz?

Peço licença e corro pro banheiro mais próximo. Coisa rápida! O problema é o que vem depois, aquela maldita consciência que me inferniza as idéias por ter tomado atitudes insignificantes e mesquinhas, quando o que deveria estar mesmo pensando e fazendo era tentar achar uma solução mais justa para o caso.

Credo em cruz, seu lixão! Vê se dá um jeito nessa situação, antes que a serpente que vive dentro de você fique raivosa demais e devore o controle de seus atos! Aí, bicho, é só sanatório e tratamento de choque pra dar jeito!

Outra coisa também que me deixa puto da vida é o fato de achar que estou morrendo a cada dia que passa, e tudo passa e nada fica, e que depois de tudo, de uma agonia inútil e miserável, vejo-me sozinho a percorrer um caminho desconhecido. Nesse devaneio, grito por minha mãe, irmãos, tios, amigos ou quem quer que seja. Até um animal qualquer me seria bem vindo. Corro, ando, transpiro a testa, mas nada, nada! E o que vejo é somente nada, e o que sinto é só saudade, uma maldita saudade acompanhada de uma vontade louca de desabafar com alguém! Cara, só vinte e oito anos e já estou completamente angustiado pela morte! Sinto-a, a carniceira, a roer lentamente minhas beiradas, minhas partes mais frágeis, meu âmago, pouco a pouco...

Sabe de uma coisa, o que me deixa mais intrigado nesses seus relatos neuróticos é o fato de você conseguir diagnosticar seus problemas e no entanto não conseguir encontrar antídotos...

De repente, num infinito espaço de tempo, o som de um tiro ecoa no espaço, e micro partículas de massa encefálica, banhadas em sangue, flutuam por segundos no espaço...

Fique em paz, meu saudoso amigo! Você ainda pode sonhar! E já não precisamos também temer mais nada!

Cristiano Covas, 03.12.1.994.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 30/07/2010
Código do texto: T2407912