APENAS UM PIANO...


Ao piano, Sonata ao luar. Pela janela, o ar é tênue, como que sôfrego, também parece respirar o som da música.
Longe, no escuro da noite, nada se ouve, além da suave melodia que vara as entranhas do tempo e me faz reportar, como se entrasse em seu túnel. Próximo ao Dia dos Pais, relembro a luta deste pai, para oferecer o que de melhor pudessem, segundo pensava o casal.

Recordo este pai, que sem o jeitinho "polido" da mãe, se empenhava e tudo que conseguia ganhar, dava nas mãos dela, para que empregasse em suas metas relacionadas aos filhos. Não entendia muito a determinação dela, mas não atrapalhava e orgulhava-se dos resultados. Era apaixonado por ela, nunca a contrariava. Depois, brilhante ao cavaquinho que tocava de ouvido, como se diz - autodidata, sentia-se vaidoso pelos progressos dos filhos.

 
A casa que moravam era simples, poucos móveis, não havia geladeira, televisão nem pensar. Algumas novelas viam na casa da vizinha, vez por outra. Um filtro de barro sobre a prateleira da cozinha cuidava de manter a água fresquinha. Um fogãozinho pequeno, um ferro à brasa, alguns móveis e mais nada.
 
Apenas duas coisas eram consideradas importantes para aquela família, casal e quatro filhos: três meninas e um garotinho temporão. Educação (escolar) e Música (arte).
 
Como disse, na sala quase vazia, reluzia um piano novo, "Master", comprado em intermináveis prestações na antiga Mesbla. Destoava dos outros móveis. A escola era pública, naquela época de qualidade, onde todos estudavam e certamente obtinham as melhores notas, segundo eles, era o retorno que esperavam. Do pouco dinheiro que o pai ganhava em seu carro de praça (taxi), era para alimentação, roupas (para a primeira filha e as outras esperavam até que viessem passando até atender a última), sapatos eram da mesma forma, horários alternados para que duas usassem o mesmo vulcabrás, mas pagar ao professor de piano era de lei.
 
Ressalto, que não havia filhos revoltados, malcriações, brigas por não terem o que as amiguinhas exibiam, cobranças, imposições. Nem existia na época, visitas ao Analista, Psicólogos. Estava implícito, o sacrifício pela formação de cada um, baseado no amor, na vontade e consciência da busca por dias melhores.

Todo sacrifício era válido. Quando pequenos e queriam brincar, a mãe fazia bruxinhas de pano e os filhos faziam móveis de caixa de fósforos, panelinhas de argila...Que maravilha!

 
A mãe capitaneava as orientações, pois vinha de família abastada ( avô fazendeiro) e deixara tudo pelo amor de seu marido, digamos, uma história  parecida com a "Dama e o Plebeu", mas conservara os princípios “finos” da educação que tivera e lutava para que seus filhos fossem preparados senão da mesma forma, de modo aproximado. E conseguiu.
 
Entre Noturnos e Pour Élise de Chopin, Moonlight Sonata de Beethoven, Rapsódias de Franz Liszt ou Marcha Turca de Mozart, foram criados.

Todos os filhos concluíram o terceiro grau e tocavam piano. Aprenderam a amar a música Clássica. A filha mais velha brilhava em audições importantes no Teatro Municipal. O restante da família não podia comparecer, pois os trajes eram caros. Apenas a mãe levava e contava ao chegar, dos aplausos que ecoavam na noite de gala.
Apenas uma apreciava, mas não gostava de tocar. Era uma família musical.

Ela partiu aos 42 anos, entretanto cumpriu seus objetivos. O pai sofreu demais a perda, mas ainda não muito jeitoso, deu continuidade aos sonhos sonhados em parceria, agora mais fácil, pois estavam os filhos quase moços.

 
Não saberia dizer se todos os filhos dedicaram-se à música por prazer, mas sei que três deles ainda têm em suas casas um piano e quando se reúnem é possível ouvir as melodias daquela época. Também saberia dizer que todos foram bem criados, íntegros, unidos, amorosos e sensíveis. Mais que isso, aprenderam a entender a postura e sacrifício do pai por esta formação.
 
Não havia como disse antes, revoltas, reclamações pela indução à música, pelo ar meio disciplinador da mãe, nem acusação ao pai pela falta de conforto. A sensibilidade sobrepujava qualquer atitude severa neste sentido.
 
Afirmo que há apenas uma grande saudade, em meio às Sonatas, Noturnos, Sonhos de Amor, Marchas Turcas
e outras.
Hoje agradecem não terem tido nada. Ficou claro que os bens materiais nada dizem, diante dos valores espirituais. Penso que isto deve faltar aos lares atualmente.

À Seu Heitor Ferreira Nunes, nossa eterna gratidão.

" Mortos são invisíveis, mas não ausentes".
                        Leonardo Boff


Sonata ao Luar. Uma lágrima escorre pela face...

Elen Botelho Nunes
Enviado por Elen Botelho Nunes em 02/08/2010
Reeditado em 03/08/2010
Código do texto: T2414790
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