ALICE, A NOIVA DE MILITÃO?!!!
“A exemplo da maioria delas, colocou orgulhosamente os dedos da mão direita à minha frente, bem à mostra, como a dizer resoluta: “Sou comprometida!” E com que olhos de desdém ela seguia tudo isso. Muito embora, no íntimo, um outro sentimento de contentamento estivesse a revirá-la toda por dentro. E eu havia entendido muito bem esse sentimento... como havia.”
Eram soberbos os motivos para eu estar eletrizado. Primeiro, era sexta feira, o esperançoso antegozo do final da semana; segundo, a noite enluarada irradiava maravilhosa e, de quebra, sobravam alguns trocados no bolso, coisa rara naquele tempo; terceiro, era o dia do noivado do Militão, um amigo de fé, um irmão camarada da turma. Aliás, esse amigo de fé, irmão camarada, ele conseguiu-o muito fácil de nós. Explico: Militão e sua família, recém-chegados ao bairro, vieram do interior do Estado. Participava conosco apenas das peladas nos finais de semana, mas, não, das reuniões noturnas nos bares do Hélio Camelo ou do Luís Abdala. Não tinha, por assim dizer, o batismo do dia-a-dia sacramentado pela cumplicidade irrestrita que os mais velhos guerreiros da Águia Escarlate1, deviam ter, obtidas justamente nas revelações confiadas nesses colóquios. Um caráter íntegro, é bem verdade, também tímidamente reservado. Finalmente, com o nome “Militão”, nem apelido podia ter! Não se podia correr o risco de desmoralizar uma alcunha; portanto, Militão ficava de bom tamanho.
Pois bem, cheguei à casa da noiva por volta das 10 h. O movimento já intenso, vespas e lambretões faziam manobras na rua, enquanto vários grupinhos de gente conversavam prestes a entrar.
A casa da moça, que eu não conhecia, ficava ali pela rua Catalão entremeando a Paraíba e a Ceará, perto das grandes construções --- antigas máquinas de arroz e oficinas. Consistia o imóvel num pequeno alpendre na frente, antecedendo a sala, onde a coisa rolava; mais uns dois ou três cômodos para o fundo e já se divisava o quintal. Bem modesta e acolhedora a casinha. Em seu interior, uma vitrolinha movida a pilhas ray-o-vac mandava animada, circundada por LP’s encimados por Renato e Seus Blue Caps; também juntos, soltos, alguns compactos: Simonal, Pholhas, Fevers e outros.
Alguém, observando a minha chegada, puxou-me pelo braço : “Olha, bicho, o trem aqui tá uma brasa”! Tratava-se do Colirão e do Hélio da Cantú, em tremendas bocas de sino e camisas extremamente berrantes.
Acendi um cigarro. (Santo Deus! Naquela época eu fumava!) Puxei uma boa tragada exalando a primeira fumaça que foi juntar-se às demais já existentes; no lusco-fusco da sala, em meio às volutas de fumo, podia-se sentir a vibração contagiante de uma animada energia, levando os jovens a dançar e a viver intensamente. Em meio a tudo isso, alguém grita, sugerindo trocar Johny Rivers e sua memorável “Do You Wanna Dance?” por Roberto Carlos.
Discretamente, nos cantos da salinha e em maior volume na cozinha serviam um “quentãozinho” bem esperto, intencionalmente livre de boa parte do líquido diluente da cachaça, no que era acompanhado por nacos de pizza.
Ao contrário dessa regrada bebida, alguns litros de conhaque “comel” corriam soltos, dando o ar de sua graça e despertando-a nos outros. Doce, a ponto de iludir no momento, o “comel” era capaz de tomar os sentidos da criatura logo, logo.
Da sala agora se ouviam os lamentos de o “negro gato”. Alguém pelo visto atendera ao pedido do dançarino, fã de Roberto Carlos.
Em casa pequena, ocasião de festas, a gente mesmo não querendo vai tomando conhecimento de suas dependências. O pessoal vai chegando, empurrando e, quando menos se espera, estamos entregues na cozinha!
Nessa dependência da casa,--- ainda sem oportunidade de cumprimentar o casal --- avistei Militão, lá, em meio a tanta gente, abraçado a uma moça que se mostrava de costas para mim. Da maneira como portavam dirimiam qualquer dúvida: aquela, certamente, era a noiva.
Aproximei-me e...
--- Jesus!... Era Alice!... a noiva de Militão!
Ele sorriu-me o riso dos inocentes constrangendo-me ainda mais; a moça, porém, nem pestanejou. Imperturbável, dona da consciência mais justa e inculpada, juntou-se a nós, estendendo-me tranquilamente a mão “Muito prazer!”. As pupilas de seus olhos por pouco não entraram pelos meus tamanha a frieza daquela mulher!
Desconcertado, toquei sua mão e respondi-lhe com um simples “Oi!” misto de grande surpresa e profunda decepção. Lívido, sumiram-me as palavras, ocorrendo furar-me o corpo não sairia sequer uma gotícula de sangue!
Do constrangimento, fomos salvos por amigos que, providencialmente, chegaram para também cumprimentá-los e, acercando-se do casal, levou-o para a sala. Assim que pude busquei uma garrafa de “comel” e bebi logo meio copo, arrumando boa desculpa para me mandar.
Incapaz de revelar ao Militão as disfarçadas escapadas de Alice e suas demais frivolidades, evitei o rapaz por um bom tempo, embora ele viesse a descobrir por si mesmo não muito depois. A moça, assim que o noivo a deixava em casa, madrugava de carro na companhia de um aventureiro. Tudo acabou num tremendo escarcéu, quando o amante, após o flagrante, bateu o carro e Alice fraturou o braço. Contou-me isso uns quatro meses após o incidente da apresentação no noivado, vindo a notícia aliviar-me a consciência. Quanto a Alice, eu não a vira mais. Sumira da tranqüila casa de encontros das mangueiras, desde a ocasião de seu infeliz noivado.
1Independente Atlético Clube, fundado em 15/11/1964, cujo cognome, Águia Escarlate, viria abrilhantar os campos de futebol varzeano de Goiás por várias décadas, completando em 2010, quarenta e seis anos de existência ininterrupta.
“A exemplo da maioria delas, colocou orgulhosamente os dedos da mão direita à minha frente, bem à mostra, como a dizer resoluta: “Sou comprometida!” E com que olhos de desdém ela seguia tudo isso. Muito embora, no íntimo, um outro sentimento de contentamento estivesse a revirá-la toda por dentro. E eu havia entendido muito bem esse sentimento... como havia.”
Eram soberbos os motivos para eu estar eletrizado. Primeiro, era sexta feira, o esperançoso antegozo do final da semana; segundo, a noite enluarada irradiava maravilhosa e, de quebra, sobravam alguns trocados no bolso, coisa rara naquele tempo; terceiro, era o dia do noivado do Militão, um amigo de fé, um irmão camarada da turma. Aliás, esse amigo de fé, irmão camarada, ele conseguiu-o muito fácil de nós. Explico: Militão e sua família, recém-chegados ao bairro, vieram do interior do Estado. Participava conosco apenas das peladas nos finais de semana, mas, não, das reuniões noturnas nos bares do Hélio Camelo ou do Luís Abdala. Não tinha, por assim dizer, o batismo do dia-a-dia sacramentado pela cumplicidade irrestrita que os mais velhos guerreiros da Águia Escarlate1, deviam ter, obtidas justamente nas revelações confiadas nesses colóquios. Um caráter íntegro, é bem verdade, também tímidamente reservado. Finalmente, com o nome “Militão”, nem apelido podia ter! Não se podia correr o risco de desmoralizar uma alcunha; portanto, Militão ficava de bom tamanho.
Pois bem, cheguei à casa da noiva por volta das 10 h. O movimento já intenso, vespas e lambretões faziam manobras na rua, enquanto vários grupinhos de gente conversavam prestes a entrar.
A casa da moça, que eu não conhecia, ficava ali pela rua Catalão entremeando a Paraíba e a Ceará, perto das grandes construções --- antigas máquinas de arroz e oficinas. Consistia o imóvel num pequeno alpendre na frente, antecedendo a sala, onde a coisa rolava; mais uns dois ou três cômodos para o fundo e já se divisava o quintal. Bem modesta e acolhedora a casinha. Em seu interior, uma vitrolinha movida a pilhas ray-o-vac mandava animada, circundada por LP’s encimados por Renato e Seus Blue Caps; também juntos, soltos, alguns compactos: Simonal, Pholhas, Fevers e outros.
Alguém, observando a minha chegada, puxou-me pelo braço : “Olha, bicho, o trem aqui tá uma brasa”! Tratava-se do Colirão e do Hélio da Cantú, em tremendas bocas de sino e camisas extremamente berrantes.
Acendi um cigarro. (Santo Deus! Naquela época eu fumava!) Puxei uma boa tragada exalando a primeira fumaça que foi juntar-se às demais já existentes; no lusco-fusco da sala, em meio às volutas de fumo, podia-se sentir a vibração contagiante de uma animada energia, levando os jovens a dançar e a viver intensamente. Em meio a tudo isso, alguém grita, sugerindo trocar Johny Rivers e sua memorável “Do You Wanna Dance?” por Roberto Carlos.
Discretamente, nos cantos da salinha e em maior volume na cozinha serviam um “quentãozinho” bem esperto, intencionalmente livre de boa parte do líquido diluente da cachaça, no que era acompanhado por nacos de pizza.
Ao contrário dessa regrada bebida, alguns litros de conhaque “comel” corriam soltos, dando o ar de sua graça e despertando-a nos outros. Doce, a ponto de iludir no momento, o “comel” era capaz de tomar os sentidos da criatura logo, logo.
Da sala agora se ouviam os lamentos de o “negro gato”. Alguém pelo visto atendera ao pedido do dançarino, fã de Roberto Carlos.
Em casa pequena, ocasião de festas, a gente mesmo não querendo vai tomando conhecimento de suas dependências. O pessoal vai chegando, empurrando e, quando menos se espera, estamos entregues na cozinha!
Nessa dependência da casa,--- ainda sem oportunidade de cumprimentar o casal --- avistei Militão, lá, em meio a tanta gente, abraçado a uma moça que se mostrava de costas para mim. Da maneira como portavam dirimiam qualquer dúvida: aquela, certamente, era a noiva.
Aproximei-me e...
--- Jesus!... Era Alice!... a noiva de Militão!
Ele sorriu-me o riso dos inocentes constrangendo-me ainda mais; a moça, porém, nem pestanejou. Imperturbável, dona da consciência mais justa e inculpada, juntou-se a nós, estendendo-me tranquilamente a mão “Muito prazer!”. As pupilas de seus olhos por pouco não entraram pelos meus tamanha a frieza daquela mulher!
Desconcertado, toquei sua mão e respondi-lhe com um simples “Oi!” misto de grande surpresa e profunda decepção. Lívido, sumiram-me as palavras, ocorrendo furar-me o corpo não sairia sequer uma gotícula de sangue!
Do constrangimento, fomos salvos por amigos que, providencialmente, chegaram para também cumprimentá-los e, acercando-se do casal, levou-o para a sala. Assim que pude busquei uma garrafa de “comel” e bebi logo meio copo, arrumando boa desculpa para me mandar.
Incapaz de revelar ao Militão as disfarçadas escapadas de Alice e suas demais frivolidades, evitei o rapaz por um bom tempo, embora ele viesse a descobrir por si mesmo não muito depois. A moça, assim que o noivo a deixava em casa, madrugava de carro na companhia de um aventureiro. Tudo acabou num tremendo escarcéu, quando o amante, após o flagrante, bateu o carro e Alice fraturou o braço. Contou-me isso uns quatro meses após o incidente da apresentação no noivado, vindo a notícia aliviar-me a consciência. Quanto a Alice, eu não a vira mais. Sumira da tranqüila casa de encontros das mangueiras, desde a ocasião de seu infeliz noivado.
1Independente Atlético Clube, fundado em 15/11/1964, cujo cognome, Águia Escarlate, viria abrilhantar os campos de futebol varzeano de Goiás por várias décadas, completando em 2010, quarenta e seis anos de existência ininterrupta.