A MAIOR VOCAÇÃO

Pesquisando em dicionários ou até mesmo observando o nosso cotidiano, constatamos que a palavra “vocação” é muito usada profissionalmente para expressar o dom ou a tendência que determinada pessoa tem com alguma área profissional. Na perspectiva religiosa, porém, adquire um significado especial: a voz de Deus que nos chama para seguir determinado caminho.

Desde criança sentia um forte desejo de seguir a vida religiosa. Tinha o costume de conversa com meu Pai amado (Deus,) e muitas vezes escrevia-lhe numa espécie de diário feito de um caderno comum (o qual enfeitava com desenhos e pequenas pinturas), várias cartas. A Ele contava minhas alegrias, tristezas, fazia minhas perguntas, revelava-lhe meus pensamentos e desejos. Quando adolescente estudei em um colégio de freiras e algumas destas fizeram-me querer ainda mais seguir o caminho religioso. Sem falar que o pároco da cidade, que era meu professor, me dava todo o incentivo. Também participava do grupo vocacional, viajava para os encontros espirituais, visitava os conventos, lia sobre a vida de religiosos e religiosas e o meu coração se enlevava cada vez mais ao amor a Deus e ao próximo. Aquilo era tudo que eu queria! Nada mais.

Em uma dessas viagens vocacionais, juntamente com outras meninas que estavam comigo, pelo caminho comecei a ouvir uma linda melodia como que cantada por vozes angelicais acompanhada de instrumentos de finas sonoridades. Disse então às minhas colegas: Que lindo esse hino!”. Mas elas disseram: “Que hino? Não estamos ouvindo nada.”. Fiquei, então, embaraçada, mas continue ouvindo o mais lindo dos hinos que já ouvi.

Outro fato importante foi quando vesti um hábito de freira durante a encenação de uma peça teatral sobre uma lenda que explicava o surgimento da Pedra do Frade, símbolo da cidade. Deus! Quando vesti aquela vestimenta senti-me no céu. Não me continha de tanta felicidade! E naquele momento decidi: eu iria ser freira. Conversei com as irmãs sobre a minha decisão e durante o almoço contei a meus pais que se sentiram muito felizes com minha escolha.

Um dia sob uma árvore, escrevendo a meu Pai muito amado, falando sobre meu desejo de servi-lo unicamente, ouvi uma voz que me soprou aos ouvidos: “é muito fácil ser bom no meio dos bons”. Naquele momento senti como que um desafio lançado. Lembrei de algumas reservas que ainda tinha sobre o caminho que decidira tomar. Sempre tive uma personalidade forte, ainda que somada à doçura, mas isso me impedia a aceitar certas imposições que deveria acatar naquela vida que ansiava. Inúmeras indagações surgiam em minha mente. Uma dela era como se fazia voto de pobreza e se vivia em uma linda casa próximo até do luxo? Sei, nada pertencia aos religiosos: era tudo empréstimo. Mas aquilo meu coração não poderia aceitar. Meu voto deveria seguir a verdade. Se me tornasse religiosa queria viver como os pobres e entre eles. Outro problema era o voto de obediência que deveria fazer a Deus, mas só que Deus estaria representado na pessoa dos superiores da igreja aos quais estivesse submetida. Tudo que fizesse ou desejasse fazer deveria antes ser analisado por eles e aceito ou não. Meu coração só aceitava ser obediente a Deus e a ninguém mais, pois como poderia eu colocar minha vida nas mãos de alguém que talvez nem trouxesse verdadeiramente o maior mandamento da lei de Deus em suas ações, como já havia presenciado em comportamento nada amável de alguns que se diziam religiosos. Não, aquilo me incomodava. Lembrei também do desabafo de um amigo que conheci desde diácono. Cheguei inclusive a assistir seus votos (meu grande e inesquecível amigo, que como por mágica sempre surgia inesperadamente quando eu mais precisava. Quanta saudade meu amigo! Deus o abençoe sempre!)e, ao lhe confidenciar meu desejo pela vida religiosa disse-me: “Martinha, isso não seria uma fuga?” Seus olhos penetrantes e negros, emoldurados por generosas sobrancelhas, brilhavam de lágrima dizendo aquelas palavras e, dentro do meu coração, sem nenhuma palavra a mais, eu conseguia compreender tudo. Desisti e decidi: aceitarei o desafio proposto pela voz.

Hoje relembrando os fatos emociono-me e pergunto-me: Segui a estrada certa? Por que não segui aquele caminho tal belo e tal cheio de paz? Por que não assumi minha fraqueza, minha talvez incapacidade de tomar decisões certas por mim mesma? Por que não fiquei com o aparentemente fácil: ser bom no meio dos bons? Talvez isso era tudo que seria capaz de fazer. Fora dos conventos e mosteiros os bons são sempre aniquilados, postos de lado e desprezados, quando não destruídos em armadilhas. Agora percebo: aquela voz que ouvira devia ser a da serpente que fizera Adão e Eva ser expulsos do paraíso e eu não percebera. Ela me desviou do céu e me lançou no inferno. Inferno porque o mundo, a sociedade tornou-se um campo de batalha, cada um quer usar de espertezas utilizando-se da corrupção; a vida parece virar um mero jogo em que as cartas quase nunca estão sobre a mesa, mas camufladas por trás de um sorriso falso, escondidas dentro das mangas de ternos, sutiãs, meias, cuecas ou sob a toalha da mesma mesa. E o pior: nunca sabemos com quem jogamos. Há muitas máscaras. O homem tornou-se o lobo do homem, como diria o filósofo inglês Thomas Hobbes, para tristeza da humanidade. No entanto,quem sabe isso seja apenas a consequência da aceitação cega a uma ideologia dissimulada e um dia todos abrirão os olhos e poderão ver claramente.

Seguindo meu pensamento, lembrei que tenho uma amiga que é freira e ela não me parece tão feliz. Não pode realizar seus sonhos quando quer, mas somente quando seus superiores permitem. No entanto, também conheço quem é muito feliz nessa vocação. Visitei-a recentemente e quanta alegria nos envolveu! Conversando com ela, ouvia-a dizer: “Marta, eu sou tão feliz que não cabe em mim tanta felicidade. Eu queria poder dividir com todos tudo que sinto. Eu não me arrependo um só minuto de ter dedicado minha vida a Ele (Jesus)”. Tudo isso exultava a voz daquela pequenina freira que já contava seus noventa e dois anos: lúcida, iluminada e feliz. Meu coração emocionou-se.

Assim muitas vezes senti meus pensamentos se debaterem em dúvidas. Segui o caminho certo? No entanto, agora penso que qualquer pessoa pode fazer o bem e ser bom em qualquer lugar que esteja, nas condições que se encontrar. Não importa se você é rico ou pobre, religioso, casado ou solteiro, leigo, idoso ou jovem, deficiente ou não, em qualquer tempo ou espaço, cada um pode ser útil e fazer todo o bem que puder, ainda que por isso seja desprezado, posto de lado. Há felicidade no fazer com amor e nunca se está sozinho quando se carrega Deus no coração. Assim, quase sem me dar conta, descobri que a maior vocação é amar a todos sem distinção: é ser amor em corpo, alma e coração.

Mês de agosto: mês vocacional.