DETETIVE EM AÇÃO

As histórias de detetives, de aventuras ou de suspenses constituem perigo para os criadores literários uma vez que o ritmo aplicado ao enredo, a velocidade das cenas e das ações, os artifícios dos personagens e a capacidade de produzir efeitos eficazes podem alçar o escritor ao mais alto patamar ou jogá-lo no limbo ou no rol do esquecimento.

Quem não se lembra das aventuras de Sherlock Holmes, brilhante personagem de Arthur Conan Doyle? A característica essencial de Holmes repousa na impaciência e na ausência de estímulo intelectual desafiador para sua cultura de modo que, para fugir do tédio, busca equacionar problemas aparentemente insolúveis para a polícia inglesa. Sua fama se expande de tal maneira que até pessoas ricas – ou mesmo as que nada têm – o procuram para dar respostas a fatos estranhos ou “muito óbvios”, como sugere o amante da química que tem um laboratório em casa, toca instrumento de corda e usa cocaína para estimular o cérebro.

A captura dos criminosos e o estratagema dos percursos de Holmes – que, diga-se de passagem, não integra as forças de segurança pública – decorrem de estudos técnicos em que a ciência, a análise e a percepção dos fatos se enquadram em um quebra-cabeças restando ao detetive apenas o trabalho de montá-lo.

Diferentemente de Holmes, Jules Maigret é um comissário da polícia de Paris que busca, através de evidências, de conversas insólitas, de visitas inesperadas e de métodos coercitivos, descobrir os fatos que resultam em crimes. Criado pelo belga Georges Simenon (1903-1989), o comissário Maigret vendeu mais de um bilhão e meio de exemplares em todo o mundo e protagoniza pouco mais de setenta romances e mais algumas histórias curtas.

“Liberty Bar” – que sai pela edição de bolso da editora L&PM – constitui mais um título da longa obra que vem sendo traduzida para o português possibilitando ao público brasileiro contato direto e extasiante com narrativas de fôlego e enredos brilhantes. O comissário Maigret viaja a uma cidade interiorana para desvendar o assassinato de William Borwn, um excêntrico australiano que vivia com mãe e filha numa ampla casa, aparecia na parte urbana para fazer compras ou para – durante alguns dias por mês – receber uma mesada. William Brown é morto com arma branca. As duas mulheres que moram com ele são encarceradas como as principais suspeitas do crime, entretanto, após recebê-las na casa em que moravam com a vítima, Maigret as liberta, parcialmente convencido de que não mataram William. As malas repletas de pertences – configurando fuga aparentemente decorrente de culpa no assassinato – respaldam a insegurança e o medo relatados durante a conversa.

Maigret segue para a cidade vizinha e encontra o Liberty Bar, um pequeno estabelecimento mais afetivo do que comercial. Jaja – a proprietária viúva e falante – e Sylvie – uma meretriz de faces joviais, caminhando desinibidamente nua entre as mesas – informam ao investigador que William Brown aparecia mensalmente para beber, ajudando financeiramente na manutenção da alimentação. O detetive desconfia da intimidade, mas Jaja acrescenta que, depois da morte do marido e de algum tempo de convalescença, o Liberty Bar adquirira mais ar aconchegante e fraterno do que ambiente meramente lucrativo.

O comissário parisiense ainda se encanta com os detalhes de que, ao visitar o local mensalmente, William Brown não procurava a meretriz e, depois de se embriagar, dormia em qualquer lugar. Aos poucos, as informações vão se reunindo e se surpreende com o testamento do falecido: além de deixar parte da fortuna – que consistia em fábricas, terras e ações na Austrália – para as duas mulheres com quem morava, Jaja e Sylvie também são diretamente beneficiadas.

Os detalhes do testamento compõem o provável mapa da morte de William. Embora Jaja e Sylvie insistam na manutenção do discurso do desapego, da amizade e da fraternidade incondicional do relacionamento com o morto, Maigret flagra Sylvie saindo de um quarto de hotel onde se encontrara com um dos prováveis suspeitos. Em sua bolsa, vinte mil francos. Depois de visitar Sylvie e o garçom na cadeia, Jaja se desespera, embriaga-se e deixa escapar a informação de que William, tempos antes de morrer, lera parte do testamento em que as colocava em condição favorável.

Quem matou William Brown? O rico filho empresário que está na cidade cuidando do féretro e de negócios? As duas mulheres com quem vivia? A dona do Liberty Bar? A jovial meretriz que era sua amiga? O garçom Joseph que aparecia no Liberty Bar?

Simenon constrói um dos melhores enredos de detetives dos últimos tempos, fazendo de Maigret – um homem simples, burocrata, mediano, intuitivo e com um pouco de sorte – um cão de caça de faro apurado.

***

Liberty Bar

Geroges Simenon – L&PM – 160 p. – R$ 15,00

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 6 de agosto de 2010.