A poeta (ou "A dor", ou "A dor no momento em que doeu")

A poeta, sim, poeta, porque a poesia é assuexuada e assim sendo, independe de denominações de tal caráter, e não há "poetiza" e só poeta como não há "muso" e sim musa, apenas musa. A poeta baixou os olhos para o papel marfim que lhe tinha à frente do seio, o papel que era, afinal, seu local de trabalho. Baixou os olhos como quem se submete a um serviço indesejado. Indesejado não porque não o quisesse, não porque não o amasse com todas as forças que lhe sucumbiam a alma; ele, o serviço, era-lhe indesejado no momento pela contradição em si do serviço. Não eram os melhores poetas os poetas que compunham sobre sua própria dor? Pois diga-me um poeta que conseguiu compor no auge de seu desespero. Diga-me um poeta que pôs de lado o sofrimento em seu ápice, em seu ponto-vértice de parábola para encontrar a melhor rima. Entretando, se não há frieza que permita esse desvio sintomático de pensamento, essa fuga redudante de seu sofrimento para compor sobre seu sofrimento, como é possível que um poeta realmente passe ao papel toda a dor que lhe tomou no auge, se não pode ele mesmo pensar durante esse auge? Como poderia deixar para escrever seu sofrimento em um momento que não o mais sentisse tão forte no peito? Como esperar que a dor parasse de rasgar-lhe o coração para que pudesse dissertar sobre as feridas?

A poeta baixou os olhos para o papel marfim e dessa vez baixou também a mão, tomando a pena, sim, a pena, porque os melhores poetas são os que retomam o espírito antigo, na opinião da poeta, e escreveu, no auge de seu sofrimento, assim como o tinha como impossível para um poeta em serviço.

O resultado foi um texto clichê, uma poesia não poesia, não modernista mas sem rimas, sem impressão nem expressão, um texto clichê que ao menos um jovem choroso, sim, porque os jovens são de fato os que mais sofrem, ou os que mais prestam atenção em seu sofrimento, ou até os que mais dão valor e grandeza ao seu sofrimento, escreve em algum lugar do mundo em uma noite. Um texto que qualquer um é capaz de escrever e rasgar em seguida por reconhecer que não há talento ou criatividade no papel, apenas dor.

E o texto-dor ou a dor-texto foi o resultado de seu serviço ou o serviço de seu resultado e ela ficou feliz com ele, não feliz a ponto de parar de sentir dor, feliz a ponto de aceitar sentir dor e ir dormir sentindo dor, feliz com sua dor por poder, sempre que lesse o texto, relembrar a sensação sofrida da dor que lhe aflingira.

A poeta publicou seu texto em um livro de poemas e o nome que lhe deu foi "A dor no momento em que doeu". A crítica não compreendeu o real sentido daquele texto e ela nunca mais publicou nada, mas todos os jovens chorosos entenderam o que ela quis dizer no título e no texto e sentiram-se feliz em saber que o que escreviam no momento de dor fazia sentido para alguém. Identificaram-se.

E a poeta vendeu um milhão de exemplares, ficou rica, mudou-se para o Caribe e nunca mais sentiu dor.

The Dreamer
Enviado por The Dreamer em 17/09/2006
Código do texto: T242844