Um Dia de Cão

Retirei um envelope na caixa de correio do meu portão e nele um arrepiante aviso assim me determinava: “de acordo com a atual medição cartográfica o número duzentos e nove desta moradia doravante passará a ser oitocentos e quatorze, conforme dita o Decreto nº tal publicado no Diário Oficial do dia tal, página tal. Caso essa alteração não seja efetuada no prazo de trinta dias, o proprietário deste imóvel, ora notificado, estará sujeito a multa de acordo com o parágrafo tal do artigo tal, do referido Decreto”.

Pasmo eu li a dita cuja e me arrepiei, e a seguir sai resmungando e esmurrando as paredes, assim esbravejando:

- Diabos! Certamente perderei dias para acertar o meu cadastro. Esses malditos ainda me pagarão nem que seja com o crucial poder do meu sagrado voto!

Pensei um pouquinho no que havia dito e me contentei com um lânguido sorriso - tipo o da Monalisa -, enquanto dizia a mim mesmo: grande porcaria o meu voto. Quem é ele no meio de tantos milhões? Ele nunca valeu nada: só voto em quem perde

Refleti um pouco e resolvi agendar determinado dia para enfrentar as turbulentas filas e respeitosamente acatar aos ditames do Decreto de nº tal. Teria que, em apenas um dia, alterar meu endereço no emprego, em bancos e nas empresas de água, luz, telefone, gás e outros. Seria aquele o dia mais infeliz da minha vida?

Antecipadamente imaginei me vendo em posição ereta; faminto; sedento e empurrado nas filas. Tudo por culpa de um indivíduo que há pouco tempo havia recebido o meu digníssimo voto e que, agora, através de uma carta oficiosa determinava autoritariamente o que eu deveria fazer para seu agrado. Não devia ter votado nele, mas...

Saí cedinho achando que seria o primeiro na fila do banco: grande engano, pois ela se estendia na calçada pública por dezenas de metros.

- Parece que esse povo todo dormiu aqui – pensei.

Depois de andar pé após pé, por fim, entrei.

Peguei a ficha cento e trinta e seis, que era o equivalente a quarenta minutos de espera a me mortificar de ansiedade e medo de banco.

Os ponteiros do relógio moviam desesperados em direção ao meio-dia e eu me agoniava dizendo pra mim mesmo: o dia de hoje não vai dar, só um dia não vai dar.

Após ser atendido pelo bancário sai a passos largos em direção ao meu segundo agendamento do dia: a conta d’água.

Chegando lá me amargurei numa outra fila de gente calada e entristecida que se contorcia nuns degraus de escadaria e depois se alongava num corredor estreito e tortuoso.

Peguei a ficha de número oitocentos e setenta e fiquei de ouvidos atentos aos sons que vinham de um painel eletrônico onde se exibia os números das fichas de chamada. Pouco demorou e o painel tocou estridente um "din dom". Para meu desespero lá estava bem luzente o número seiscentos e noventa e nove. Fiz uma rápida conta “de cabeça” para certificar-me de quantas pessoas estavam na minha frente, e entrei em desânimo: eram apenas cento e setenta e um. Nesse momento me lembrei do tal sujeito que ajudei a ser eleito, e que teve a audácia de me mandar a dita correspondência, então desabafei cochichando a mim mesmo, assim sussurrando:

- Estou aqui por causa daquele diabo! Maldito! Filho da puta!

Olhei para traz e vi que a fila já havia duplicado e pus-me a zombar do último dela, assim murmurando: - aquele cara ta fu...... só amanhã ele sairá daqui! Sorri meio aliviando; me contentando com o descaso do qual eu ali fazia parte.

A fome começou a barulhar nas vísceras.

Pela décima vez olhei o relógio e falei:

- Caramba, já são duas e meia da tarde. Hoje não vai dar! Terei que faltar mais um dia no trabalho. – Pensei desiludido.

Inesperadamente uma morena desgraciosa de sorriso, corpo, cara e cabelo, apareceu com uns óculos tipo fundos de garrafa agarrado em suas orelhas e põe-se de pé no meio do corredor, e lá gritou histérica:

- Atenção. Quem não vai querer segunda via de conta d`água que entre numa fila a partir daqui de onde estou!

Foi um corre-corre, um desespero assustador, e aos esbarrões fui um dos primeiro a chegar perto dela. Quase me derrubaram. Chegando a minha vez ela me perguntou:

- O senhor, o que quer?

Pensei em responder-lhe: jogar bilhar. Mas me contive.

Mostrando-lhe a carta, mansamente falei:

- Alterar o meu cadastro!

- Cadastro? Ela me interrogou arrumando seus óculos de graus e acrescentou: sinto muito, não é aqui! Vá para a outra fila!

- Eu lá estava! – disse-lhe enérgico.

- Pode voltar!

- Lá não é somente para quem quer segundas vias? Não foi assim que você gritou?

- Não interessa, moço, volte! – ela berrava parecendo um coroné de outrora. Me acautelei.

Nesse ínterim, alguém da fila que eu havia saído me encarou gritando:

- Pra cá ninguém volta! Aqui não tem palhaço! Ou vai me encarar?

Voltei a cabeça e me deparei com o tal desafiador, que já era o primeiro da fila dos debandados. Era um mulato com uma imensa tatuagem de cara de leão no muque do braço direito. Ele se parecia um halterofilista, pois tinha mais músculo no corpo do que nas vitrines de açougue. Seu porte físico intimidava qualquer pessoa.

Fiquei na corda-bamba, me questionando: devo encara-lo?

Deixei minha adrenalina baixar um pouco e pausadamente eu lhe disse:

- Senhor, tenha consciência! Tenha paciência! Eu também preciso ser atendido.

- Não é problema meu! – Retrucou-me, já de punho cerrado.

- Algum problema Valdira? – indagou um indivíduo que misteriosamente apareceu no meio do tumulto, e nele se via um crachá de chefe pendurado ao pescoço.

Pensei: chegou a minha salvação.

E Valdira apontando um dedo na direção do mulato, assim disse ao chefe:

- Doutor Olavo, aquele moço não deixa esse senhor voltar para a fila de cadastros.

- Senhor, calma! Pessoalmente te atenderei! – disse-me o chefe.

Sai feliz com o acolhimento do chefe sem, contudo, deixar de encarar o desdém que o gigante tatuado demonstrava.

A tarde caia velozmente.

Esbravejando olhei o relógio e disse a mim mesmo: eu não falei? Somente um dia não deu!

Precisei de mais dois dias para atender às ordens do envelope da minha caixa postal.

Ah, se eu morasse num barraco teria gratuidade em luz, água, IPTU e não possuiria soleira sob a porta.

José Pedreira da Cruz
Enviado por José Pedreira da Cruz em 12/08/2010
Reeditado em 30/08/2018
Código do texto: T2433217
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