O CASAMENTO DE SEBASTIÃO

“A força do desejo da carne facilmente vence as barreiras morais do homem insatisfeito.” (Textos Judaicos)

O bairro onde cresci, era típico de cidade do interior. Todo mundo sabia e participava do cotidiano de todos. A vida comunitária em torno da igreja era imperativa, visto a falta de opções culturais e de lazer. Aos domingos: missa pela manhã; no período tarde, catecismo e cinema no salão paroquial. Nosso pároco era bastante respeitado. Naquela época, a celebração religiosa era proferida em latim, porém, a homilia era em português. Nesse momento, o vigário falava de forma clara e contundente aos seus paroquianos. A moral cristã pregada de forma rígida para cada um dos fiéis. Todos os problemas locais chegavam aos seus ouvidos pelas "beatas" e também através da confissão. Assim, vivíamos de forma obediente aos preceitos da Santa Madre Igreja.

Todavia, um acontecimento inusitado ocorreu em nossa paróquia. Perto da igreja, morava uma senhora com seu marido e quatro crianças, todas adotivas, pois o casal não tinha filhos naturais. A mulher chamava-se Nair e o homem, José. Muito conhecida no local, Nair era costureira respeitada. Na sua casa era ela “quem dava as cartas”. O marido, um confeiteiro de profissão, era mandado pela mulher. Entre as crianças, havia uma adolescente, cuja aparência lembrava Sofia Loren: grande artista da época.Chamava-se Lúcia: Morena clara; cabelos negros e sedosos; olhos verdes e lábios carnudos. O busto e ventre eram de uma deusa grega. Pernas proporcionais ao corpo, coxas grossas e “bum-bum” ligeiramente empinado. Chamava a atenção, quando passava. Todavia, sempre quieta e tristonha, sua presença denotava um ar de mistério que encantava a todos. Nair, sua mãe adotiva, tinha dois irmãos adultos que viviam em casas vizinhas, com suas respectivas mulheres. O mais velho, chamava-se Sebastião. Um mulato atarracado de cabelos crespos, lábios grossos, narigudo, com enorme cicatriz que cortava sua face, indo do queixo até a orelha. Tinha na época mais de 50 anos. Era amancebado com uma loira de nome Vilma, um relacionamento estável que durava mais de dez anos. Sebastião tinha boa situação financeira, possuindo várias casas de aluguel.

Quando Lúcia fez 18 anos, recebeu um pedido surpreendente. Sebastião pediu sua mão em casamento. Então, presenciou-se uma comoção geral. Muitos diziam que eram apenas boatos, já que o irmão de Nair era tio “torto” da menina, muito mais velho do que ela e vivia maritalmente com outra mulher. Todavia, tal fato era verdadeiro. Parece que a influência de Nair foi decisiva no consentimento da menina. Joaquim, o outro irmão de Nair, achou o comportamento de seus irmãos, desprezível.Tratava-se de uma pessoa honesta, trabalhadora, que não compactuava com injustiças. Contrariado com a situação, exigiu que Vilma, sua cunhada, não ficasse prejudicada com a separação, recebendo duas casas e uma polpuda pensão. Sebastião acabou concordando com as condições do irmão. Por outro lado, O padre sempre combativo, estranhamente não se manifestou.

O casamento foi marcado e na data aprazada, foi realizado. A cerimônia transcorreu tranquilamente em um final de tarde de sábado. A igreja estava lotada. Os comentários eram variados. Uns mostravam-se indignados com a atitude do noivo. Outros, apesar da aparente indignação, no fundo gostariam de estar no lugar de Sebastião. As mulheres, ao contrário, comentavam que depois de tirar todo o dinheiro do “pobre homem”, Lúcia o abandonaria no mundo da amargura. A maledicência observada no sexo feminino, possivelmente se deu por conta da inveja dos atributos físicos da noiva.

Depois de ter vivido muito tempo fora, voltei para terra natal. Um dia, quando entrava no ambulatório médico para trabalhar, vi um senhor sentado em uma cadeira de rodas. Pareceu-me familiar, quando vi a cicatriz, não tive dúvidas, era Sebastião. Ao lado dele uma senhora de 40 e poucos anos de idade, conversava animadamente com ele. Cheguei mais perto e olhando com atenção, reconheci a Lúcia de outrora. O rosto mantinha aquela candura dos tempos idos. O corpo tinha ganhado alguns “quilinhos”. No geral, continuava linda como sempre. Contrariando o prognóstico da “mulherada”, ainda estava ao lado dele.

Algum tempo depois desse encontro, um velho conhecido daquele tempo, informou-me que Sebastião e Lúcia não tiveram filhos. Ela, contrariando as expectativas, continuava sendo esposa fiel e dedicada ao marido. Mesmo agora, debilitado e vivendo apenas de uma minguada aposentadoria. Continuava ao seu lado, como uma filha devotada ao pai. Não sei dizer se Lúcia foi feliz na sua vida de casada. Contudo, pude notar que Sebastião mesmo de cadeira de rodas, olhava com grande admiração para sua inseparável companheira de tantos anos.

João da Cruz
Enviado por João da Cruz em 13/08/2010
Reeditado em 11/03/2012
Código do texto: T2435485
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