O pai dá um beijinho no dói dói e o dói dói já não dói

110: O pai dá um beijinho no dói dói e o dói dói já não dói

Filho, estas a ver-nos ali? Ali, naquele sofá. Ali mesmo. Vês aquilo que tens no olho? No esquerdo. Não paraste de andar aos pulos, bateste com a cara em cheio num ferro do sofá e ficaste com o olho inchado daquela maneira. E negro. Podias até ter ficado cego. Foi uma sorte.

Vês?

Não chores mais filho, o dói dói vai passar, o pai dá um beijinho no dói dói e o dói dói já não dói. Encosta a cabecinha ao ombro do pai, VÁ LÁ ENCOSTA A TUA LOIRINHA, descansa, estou aqui, ninguém te faz mal, o pai não deixa que ninguém te faça mal.

Já não me lembro, pai, eu era pequeno, nesta altura devia ter uns dois anos, aquilo ali é França, já não me lembro de nada.

Mas, se o disse foi porque também me disseram. Deve ter sido o meu pai. Lembras-te da fotografia que levei comigo para o meu quarto no dia em que o meu pai morreu? Aquela em que estavas a chorar ao colo dele? Sim. Fechei-me no quarto e chorei agarrada a ela!

Olha, filho, penso que o meu pai me terá dito também: não chores, o dói dói vai passar, o pai dá um beijinho no dói dói e o dói dói já não dói, o pai está aqui, o pai não deixa que ninguém te faça mal. Encosta a cabecinha ao ombro do pai, VÁ LÁ ENCOSTA A TUA LOIRINHA, descansa, estou aqui, ninguém te faz mal, o pai não deixa que ninguém te faça mal.

Terá sido por isso que eu te disse o mesmo.

Os pais ensinam assim aos filhos.

Tu próprio, um dia destes, também dirás ao teu o mesmo: não chores, o dói dói vai passar, o pai dá um beijinho no dói dói e o dói dói já não dói, o pai está aqui, o pai não deixa que ninguém te faça mal. Encosta a cabecinha ao ombro do pai, VÁ LÁ ENCOSTA A TUA LOIRINHA, descansa, estou aqui, ninguém te faz mal, o pai não deixa que ninguém te faça mal.

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Sei que não sabes francês, nem gostas de francês, mas se quiseres posso em dois ais traduzi-lo, antes, depois ou mesmo durante a leitura deste texto, ouve com atenção a canção ‘Avec le temps’ de Léo Ferre.

Vais ver que é mesmo assim como ele diz, como me disse o meu pai e como te disse sempre e como te digo agora: isto tudo passa e tudo passa com o tempo.

Acreditas no pai?

Entretanto: se me vires sem pinga de força, abraça-me, e mesmo que eu te pareça com força de gigante, abraça-me à mesma, porque quando tu me abraças as minhas forças tornam-se ainda mais fortes e mais forte será o abraço que te darei de volta. Filho: A nossa força vem mesmo do fundo do nosso sangue.

Acreditas no pai?

Brosses,

Borgonha

24 de Julho de 2010

Mário Moura

Mário Moura
Enviado por Mário Moura em 14/08/2010
Código do texto: T2438327
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